Economista com opinião respeitada em Angola, Augusto Fernandes afirma que a economia angolana ainda não é de mercado, argumentado que estamos num período de transição. Refere ainda que alguns programas económicos não dão resultados por deficiência dos mesmos. E mais: a economia nacional ainda estará ancorada ao petróleo durante longos anos. Para ele, deixar de importar da França e importar na África do Sul Angola não perde nada. Aliás, só ganha e ajuda no fomento do emprego no continente
Como avalia o desempenho da economia angolana nos últimos cinco anos, em que o Presidente João Lourenço tomou posse pela primeira vez e assumiu-se como reformista?
A economia angolana carrega consigo muitos aspectos que fazem dela complexa. Portanto, não podemos fazer uma análise dos últimos cinco anos sem olharmos para o passado. Fazer história. A economia nacional nasceu com a República em 1975 com uma característica de economia centralizada e caminhou assim até 1989, um período de 14 anos. Mas também é bom que se diga que antes da independência a nossa economia tinha aspectos que podemos chamar de tradicionais africanos. Não era propriamente uma economia de mercado. O colonialista tinha sim economia de mercado, ma não a aplicava em Angola. Apenas produzia cá e vendia lá fora, incluindo a cadeia logística. Em 1975 os angolanos não estavam preparados para uma economia de mercado. Nasceu assim a República. E, ao invés de adoptarmos um sistema que nos pudesse guindar para cima, optamos por um sistema que nos levou para trás, mais voltada para a sociedade medieval. Foi assim que em 1989 surgiu o Saneamento Económico e Financeiro – vulgo SEF, cujo objectivo era levar-nos para uma economia de mercado. E ainda não te- mos uma economia de mercado.
Parece ser uma contradição o que acaba de dizer. Em todo o caso, o que falta?
Continuamos num período de transição para a economia de mercado. Não temos produtos para os colocar no mercado. A partir do momento em que não tens produtos para colocar no mercado, não podes afirmar que tens uma economia de mercado. Precisamos criar condições para termos bens e serviços capazes de serem coloca- dos na economia nacional e internacional. Temos que ter consciência que estamos ainda num período de transição, que começou em 1989 e ainda não terminou. Precisamos criar condições para terminar com esse período de transição. E como deve ser feito isso? O Presidente da República, João Lourenço, trouxe uma nova dinâmica quando chegou ao poder. Essa dinâmica trazida pelo Presidente João Lourenço ainda não foi capaz de romper com as barreiras dos hábitos e costumes que herdamos da economia centralizada e também da era colonial. É preciso quebrar estes tentáculos. Certamente que quando conseguirmos quebrar estes sustentáculos vamos conseguir fazer produção com preços competitivos e com produtos de qualidade capazes de concorrerem no mercado internacional.
Diz que ainda não temos uma economia de mercado e que não te- mos produtos a preços competitivos para coloca-los no mercado internacional. Em todo caso, o país está empenhado na Zona de Livre Comércio Africana e na SADC. Como explicar essa situação?
Aqui está o erro na construção da nossa estratégia de abordar África. Temos que abordar África com muita seriedade. Não vamos competir, num primeiro momento, com Egipto, África do Sul, Ghana, Ruanda. Não vamos competir com ninguém.
E quem são os nossos concorren- tes no mercado africano?
Não temos concorrentes. O que temos que fazer é dividir a estratégia de entrada na Zona de Comércio Africana, na Zona da SADC, em duas fases. Numa primeira fase, pode ser construído uma subfase emergencial. Nessa fase emergencial o que podemos fazer é substituir a origem das nossas importações. Ou melhor, deixar de importar da Turquia, da Índia, da Europa, com realce para França e Portugal, e começarmos a importar nos países africanos. Essa deve ser a nossa estratégia. Se não entrarmos para a Zona de Comércio Livre Africana vamos continuar a importar de outros continentes. As nossas acções de curto prazo de cingir-se na substituição de importadores. Isso vai abrir caminho para que possamos ter diminuição do esforço financeiro para se pôr uma empresa a funcionar.
Por exemplo, se eu tiver de montar uma fábrica de medicamentos em Angola terei de importar os insumos a partir da Índia. Como tenho de importar de longe, preciso ter armazéns para assegurar o stock por um período de três/ quatro meses. Isso obriga a criação de um capital de giro muito alto. Se for a partir da África do Sul , o capital é menor, pois precisarei de menos de 15 dias para importar à a matéria-prima. Não preciso de construir uma infraestrutura muito grande. Portanto, passa a ser mais viável. Se não percebermos isso, será difícil compreendermos o contexto da integração económica continental. O mapa do investimento, do qual o capital de giro faz parte, se ficar peque- no reduzirmos os esforços necessários para colocarmos o negócio a funcionar, vamos logo perceber que os preços de bens e serviços vão registar redução. Para for- mar preço preciso diluir o custo do investimento, e esse custo do investimento influência no valor fnal do produto. Importar de África abre boas perspectivas para que Angola seja efectivamente autos- suficiente.
O que tem estado a faltar para que Angola entre, em definitivo, para estes blocos regionais e continental? Temos condições para concorrer com países da região, como é o caso por exemplo da África do Sul, que tem uma indústria robusta?
O que tem estado a faltar é narrativa. A nossa conversa, sobretudo a sua pergunta, vai de encontro com toda narrativa que é feita em relação aos blocos regionais. Como vamos concorrer? Que produtos temos para concorrer? Não, este não é o caminho certo! Se continuarmos com essa narrativa nunca vamos entrar nas Zonas de Comércio Livre Africana. Temos que entender que não temos produtos para colocar em nenhum mercado. Somos importadores. E temos que entender que qualquer decisão económica/financeira que vai ser tomada, antes acontece a análise política. Quando começamos a fazer a planificação, um dos primeiros quesitos chama-se políticas.
Temos primeiro que traçar políticas e só depois é que giza- mos os planos. Muitas narrativas vão no sentido de que não existe vontade política. E por que não substituímos fornecedores europeus e asiáticos? Por- que as balanças de pagamentos são utilizadas como forma de manutenção de poder. Por exemplo, se eu importar muito de Portugal, e Portugal tiver que tomar uma decisão sobre Angola vai analisar com muita serenidade. Vão ser ponderados vários factores, dentre eles a empregabilidade que essas importações suporta.
Ter problemas diplomáticos não é viável, pois pode colocar em xeque mui- tos empregos. Isso vai fazer com a China, a Alemanha, França, Portugal e Estados Unidos não tomem determinadas posições contra Angola. Portanto, deixar de importar destes países pode criar problema de manutenção de poder.Todos entraves ou retardação da entra- da de Angola na Zona de Livre Comércio Africano ou da SADC estão relacionados com questões essencialmente políticas e manutenção do poder. É por isso que tenho dito que é preciso encontrar outras formas de manutenção do poder. Esta, felizmente, deu resultados há 50 anos. E ainda está a dar resultados. É lógico que quem está nu- ma fórmula que está a dar resultados dificilmente muda para outra.
Tivemos alguns sinais nas últimas eleições que nos indicaram que é preciso mudar a filosofia da for- ma de fazer manutenção do poder político?
Bem, isso foi possível porque em 2018 o Presidente João Lourenço ratificou a nossa entrada na Zona de Livre Comércio Intercontinental Africana. Agora é preciso criar condições. O Presidente aparece aqui de facto como um reformista. Foi um sinal que demonstrou vontade de mudar o destino dos importadores angolanos nu- ma primeira fase.
“Do ponto de vista económico é bom importar de África”
Que outras vantagens isso pode trazer para o continente?
A empregabilidade, pois claro. É preciso criar empregos na República Democrática do Congo, na África do Sul, no Ghana, Senegal, Nigéria, ao invés de continuar a gerar empregos na Ásia, América e na Europa. E é bom que se diga isso. Repito: não perdemos nada se deixarmos de importar da França e passarmos a importar na África do Sul.
O que falta para fazermos essa revolução económica em África, fomentando o comércio intercontinental e reduzir-se, de forma considerável, a dependência da América, Ásia e Europa?
Falta-nos libertarmos das amarras. Enquanto analistas não temos visibilidade de muitos acordos que o país fez com alguns estados até chegarmos ao estágio que atingi mos. A independência foi feita com base em muitos acordos. A luta de libertação e a guerra civil pós independência também obedeceram a acordos com outros estados. A nível do Senegal e do Mali, aonde novas lideranças chegaram ao poder, embora por via não muito aconselhável (golpe de Estado), mas essas novas lideranças chegaram e anularam acordos que todos desconheciam. Ninguém sabia, por exemplo, que Burkina Faso tinha um acordo de importação com a França. Há coisas que o Burkina Faso só tinha que importar de França. E quando a junta militar chegou ao poder revelou a lista e começou a anular muitos deles. Portanto, podemos concluir que em Angola devem existir acordos que não conhecemos.
Desconfia que existem acordos de monopólio?
Monopólio, sim! É bom eu aqui dizer que podemos ou devemos deixar de importar de França, mas quais são os acordos que temos assinados que nos obrigam a importar deste país europeu? Não sabmos. Se o rompimento destes acordos podem criar problemas ao país, vamos continuar a importar de França. Se não criam problemas ao país, rescindimos e começamos a importar de países mais próximos e dentro do continente africano. Pensando esta direcção, o Presidente da República criou uma Comissão Multidisciplinar para revisão de todos os acordos que Angola rubricou com outros Estados. Há coisas que não sabemos. Em todo o caso, deixa lhe dizer que os cubanos não estiveram aqui por- que amam Angola. Os russos não estiveram aqui porque amam Angola.
O Partido Comunista Português não elegeu o MPLA para deixar o poder, depois dos Acordos de Alvor, porque amava o MPLA. São acordos que foram assinados, são interesses que estiveram em jogo, que não dominamos e não podemos falar com detalhes. Mas podemos dizer que do ponto de vista económico é bom importada de África. Essa Comissão criada pelo Presidente da República precisa ter muita atenção para desmistificar o que está por trás de muitos acordos assinados por Angola, criar condições de se desfazer deles sem criar instabilidade política no país. Se desfazer destes acordos pode trazer consigo alguns problemas.
A diversificação económica é um tema que já leva algum tempo. Quando o preço do barril de petróleo baixa é má conversa para muitos debates, mas quando há estabilidade o tema deixa de ser aflorado. Até quando vamos ter uma economia que “cheira petróleo”?
Essa economia que tem cheiro a petróleo vai levar ainda algum tempo para mudar. Digo isso por- que a nível do mundo ninguém deu esse salto sem assinar acordo com uma superpotência. O Dubai, que é das economias mais bem-sucedidas, fez isso. Para sair do deserto para aquela cidade que todos nós conhecemos assinou um acordo com os Estados Unidos da América. Estados Unidos procedeu algumas aberturas ao Dubai para que eles saíssem da dependência do petróleo. Hong Kong também fez o mesmo caminho, assinando acordos com o Reino Unido e outras potências.
O que está a querer dizer com isso?
Estou a dizer que os mercados têm donos! E cada segmento de mercado, para ser dada uma quota, você precisa de retirar quota num determinado país. E já explico: o Dubai hoje tornou-se no centro de compras do mundo, mas eles não produzem carros, por exemplo. E é ela que compramos mui- tos carros. O mesmo pode se dizer das roupas que toda gente vai lá comprar, mas eles não produzem. Quer dizer, tornaram o Dubai nu- ma loja a céu aberto. E quem fornece os carros ao Dubai para os vender aos africanos? É o Japão, Coreia do Sul, que são satélites americanos na Ásia. Porque que não é Angola a receber estes carros e fornecer para o resto de África? A partir do momento em que Angola fizer este acordo com o Japão para fornecer em África, o mercado de automóveis no Dubai vai falir. Quem compra os carros no Dubai são os africanos.