Passaram dez anos e continuo a sentir muito a falta do João Van Dunem. A falta de um homem distinto, de um ser profundamente singular. Meu irmão, meu grande amigo, meu companheiro de tantos ventos, tormentas e alegrias. O João era belo. Era gentil, era suave, era magnético. Tudo nele era atrativamente único. Foi o meu capitão, o meu comandante, que na minha primeira classe me conduzia em passo acelerado pela rua Paiva Couceiro em direcção à Escola 8, sempre atrasados…
Vivemos juntos a Lisboa de estudantes, num apartamento que partilhámos, na Rua da Beneficiência ao Rego, quando ele teimou em vir para Lisboa estudar, para realizar a sua vocação: ser jornalista. Era o meu protector. Cuidava de mim com o desvelo quase obsessivo com que sempre cuidou de nós, suas irmãs: as meninas, como nos chamava. Em 1974 ele partiu para Luanda e ficou. Era o tempo de todos os empolgamentos e do acontecer. Esteve na fundação da Televisão angolana, de onde saiu para Cuba.
Regressou a Luanda em 1977. Fez, como tantos outros, o per- curso da reclusão e do campo. O tempo de prisão amargurou-o e marcou-o para sempre mas não lhe secou o entusiasmo pela vida, a capacidade criativa ou a certeza de melhores amanhãs. Em 1979 veio para Lisboa e juntámo-nos, mais uma vez. A redacção do África Jornal, que chefiou e que se concebia como um centro de informação em português sobre África e para a África, foi o seu palco. Ali aportavam políticos dos novos países independentes, exilados de todas as tormentas, escritores, candidatos a escritores, actores, intelectuais de várias profissões, candidatos a um trabalho que lhes garantisse a subsistência temporária neste espaço de recuo.
O João recebia-os todos com generosa afabilidade, engendrava todas as possíveis formas de colaboração, partilhava as suas angústias, infundia-lhes o sentido de que o tempo que passava não era ainda o último. Era um jornalista político e, nessa condição, seguia com paixão acrisolada a vida política do seu país, em primeiro lugar.
Observava com atenção muito próxima os desenvolvimentos do continente africano e tinha o olhar sempre virado para longe, para o mundo. Ouvia todos, por- que era seu dever conhecer, pra informar com isenção. Procurava isolar as causas das diferenças e integrar com compreensão contradições e fragilidades inerentes à condição humana. Fez amigos na política, como nas artes. Era um conselheiro sempre orientado para a concórdia e a pacificação. Conheceu o mundo por vicissitudes da vida.
Do nosso percurso pessoal e do trabalho, que o levou primeiro a Londres, à BBC e através disso às quatro partidas do mundo. O João respirava e fazia respirar junto dele uma atmosfera cosmopolita. Envolvia-se com as cidades em que vivia mesmo quando não as amava. Viveu Lisboa até ao âmago. Nos seus últimos anos aqui, antes da sua partida para a Londres e mesmo nos primeiros anos de Londres, quando vinha a férias, era difícil acompanhá-lo à rua, pelo número de paragens para falar aos amigos e conhecidos que encontrava. Conhecia os teatros, as galerias de arte, as livrarias, os restaurantes, os lugares mais animados da noite.
E era sempre um prazer passear com ele em Londres, pelo Soho, entrar no ícone de restauração que era o Mister Kong e ser recebido com abraços e sorrisos rasgados, dos patrões aos empregados, ou chegar à noite ao Roonnie Scots, o mítico clube de jazz londrino, encontrar uma porta pejada de gente ávida de entrar e ouvir lá do fundo o grito do porteiro: hei João! Came in, my friend! O seu lugar de trabalho na BBC e sua casa, em Londres, era um porto de abrigo de quantos procuravam uma nova vida, uma experiência temporária ou viviam dificuldades transitórias. Generoso e magnânimo, sempre o vi emprestar o último dinheiro que tinha, com o ar tranquilo de quem dispunha da fonte da felicidade.
Também o vi sempre perdoar os que o magoaram, os que o ofenderam e o traíram, e explicar as razões da traição seguinte. Era assim, o João. Era difícil conhecê-lo sem nos sentirmos definitivamente tocados por ele. Pela sua serena inteligência, pelo seu interesse por todas as dimensões da vida, pelo seu africanismo cosmopolita, pelo seu conhecimento da política e pelo seu envolvimento com todas as artes. Pelo seu ar tímido e cavalheiresco, pela sua forma suave de falar, pelo seu sorriso, que fazia com que todas as madrugadas rodas- sem os seus mantos de estrelas.
Nunca percebi como conhecia tanta gente e como conseguia dar- se com gente de mundos tão diferentes, integrando-se na diversidade dos ambientes sem nunca se descaracterizar. Apesar de trabalhar compulsivamente, gostava da noite. Da beleza da noite em que se iniciou cedo ainda, na companhia do nosso irmão mais velho, o Zé, dos amigos e dos primos. O André e o Zeca, os seus grandes companheiros, o Nanducho, o Nado, o Zezé.
Eu que os espiei sempre de perto ouvia-os falar do Luar das Rosas (nome que ainda hoje me fascina), do Desportivo União de S. Paulo, do Maxinde, do Marítimo da Ilha, que frequentava com tanta naturalidade como frequentava o Calhambeque, ou o Quatro, boîtes do outro lado da cidade. O nascimento da Antónia, a filha que tanto quis, a sua filha adorada, de quem foi mãe e pai quebrou-lhe a relação com a noite mas não o gosto pela vida. E não lhe tolheu, também, o impulso irreprimível de regresso à Pátria. À Pátria tão amada, ao lugar onde todos pertencemos. O João era estrutural e irreversivelmente angolano. Nunca aceitou outra nacionalidade. Sempre se inconformou com a condição de exilado. Foram quase 30 anos. Foi a Angola em serviço da BBC e não resistiu a ficar.
O Projecto Medianova foi o seu último arrebatamento. Entregou-se a ele da única forma que sabia fazer as coisas: com a obsessão apaixonada. Consumiu-se. Deu o melhor de si. Mas fez aparecer produtos diferenciados na comunicação social nacional. Mas sobretudo, o que mais o impulsionava era a ideia de formar. Formar quadros, descobrir talentos, abrir lugar aos jovens, assegurar o melhor futuro possível para o jornalismo angolano. Tinha a teimosia dos tenazes. Já nos tempos de doença e quando ainda conseguia andar, dizia- me nos passeios a pé que fazíamos: Eu vou vencer isto. Mas se morrer, que seja com dignidade. E foi assim que ele partiu, como viveu.
E deixou-nos subitamente perdidos e desorientados. Mas o João teve, na morte, mais uma vez, o mérito de nos reunir, de nos congregar, família e amigos, mesmo longe uns dos outros e fora da nossa casa comum, de uma forma poderosa. Ainda hoje, a lembrança da sua vida tem um enorme poder de coesão e mostra que os laços com que ele nos uniu são mais fortes do que as nossas pequenas diferenças e constituem um legado que não devemos malbaratar.
Que as gerações mais novas – a que ele tanto se apegava – se inspirem na sua força serena, na sua intensa capacidade de estabelecer pontes, na sua férrea determinação de crescer com os outros; de partilhar a vida, com generosidade genuína e incondicional. Passaram 10 anos e, no entanto, parece ter sido ontem. Olá João, vamos celebrar a tua vida. A vida de um príncipe que partilha agora a vida com as estrelas. Ao longo do ano vamos reunir pedaços da vida do João (escritos, fotos, documentos, depoimentos de quem com ele conviveu), para recordar a sua vida, prestando- lhe a homenagem que merece.
POR: FRANCISCA VAN DUNEM