Amadeu Francisco, mais conhecido por general “Calunga”, é tenente-general na reforma. Aos 82 anos de idade, é, actualmente, o porta-voz da Associação 4 de Fevereiro, organização que alberga e trata dos processos relativos aos sobreviventes do início da luta armada de 1961. Dos 3 mil e 123 percurssores da luta, que abriu portas para a independência de Angola, apenas 14 estão vivos, sendo que muitos deles se encontram em situação de saúde e social precária. Amanhã, o país comemora 62 anos do histórico acontecimento do 4 de Fevereiro, data que a associação aproveita para fazer um clamor a favor dos poucos que sobraram
Opaís celebra, amanhã, 62 anos do início da luta de libertação nacional. Olhando para esse percurso, valeu a pena a vossa luta?
Sim, valeu a pena. Não poderia ter sido melhor. Mas os percursores dessa luta poderiam ter vivido melhor hoje.
Como assim?
É que, apesar de termos dado a nossa vida para libertar o país, hoje não somos reconhecidos da melhor forma.
Mas porquê?
Porque o país nos faz de heróis do faz de conta. Só nos lembram no dia 4 de Fevereiro.
Mas a vossa luta não é reconhecida?
Reconhecimento é apenas na boca. Mas, na prática, não existe nada. Dos sobreviventes do 4 de Fevereiro, tirando as pessoas que, obviamente, tiveram funções no Governo, o resto vive mal. Falta-nos o básico. Nem casa temos, vivemos na renda.
Mas, pelo menos, a nível institucional, passamos pela vossa sede e notamos que ela está a ser reabilitada, daí o motivo de estar fechada ao publico. Isso não se traduz num reconhecimento? Mas quem está a reabilitar a sede? Você sabe quem é?
Não. Pois é. Não é o Governo. É a Caixa Social das Forças Armadas, sob a orientação do falecido general Paca. No princípio do ano passado, ele foi visitar a nossa sede e não gostou do que viu. Aproveitamos a oportunidade para pedir apoio e ele comprometeu -se a reabilitar e nos dar uma viatura. E assim aconteceu. Temos hoje uma viatura de apoio e a sede está a ser reabilitada para maior comodidade e conforto do secretariado. Foi-se o homem, mas ficou a orientação. Só por isso é que vês as mudanças.
Mas além da sede, vocês têm o espaço do Marco Histórico do Cazenga, que vos foi autorizado, igualmente, para as vossas reuniões. Não é suficiente? Que Marco histórico?
O senhor jornalista foi la ver como anda aqui- lo? Está numa lástima. Até é doloroso. Está totalmente abandonado. E lá nunca foi nossa sede. O nosso espaço oficial é o que está em reabilitação e nos foi dado pelo primeiro Presidente, Agostinho Neto. É la aonde todos os dias nos reunimos para traçar os projectos.
Do conjunto de sobreviventes da luta, hoje quantos ainda estão vivos?
Nós éramos um grupo de 3 mil e 123 pessoas que foram atacar os brancos. E, hoje, sobramos apenas 14 sobreviventes. E o Governo não consegue dar condições a essas pessoas.
E como sobrevivem?
A gente só depende dos salários ou pensões. E ganhamos mal, ainda por cima com atrasos. É difícil, meu filho.
E qual tem sido a saída?
Várias vezes a gente escreveu cartas para ver se aumentam o tal salário em função das patentes. Mas não nos respondem, não nos dizem nada. Enquanto isso, destas 14 pessoas que ficamos, estamos todos numa lástima. Há inclusive pessoas doentes no nosso grupo sem assistência médica por falta de condições. É difícil.
Sentem-se abandonados?
Sim. Nós somos abandonados. Nós sempre dissemos que estamos prontos para o MPLA, mas o parti- do, que é o Governo, não nos olha. A gente sempre pediu, bateu na tecla, mandamos documentos, mas vai chegar a quem? Custa informar, é tanto sofrimento. É que só falam dos sobreviventes quando chega o dia 4 de Fevereiro. Isso não pode, não cabe. Por isso é que nos senti-mos abandonados.
Tudo isso que acaba de dizer dá o sentimento do tempo perdido a favor da pátria?
Nós fizemos a revolução muito jovens. Eu entrei na revolução com 20 anos. E hoje tenho 82 anos. Tivemos de deixar muitas coisas. Eu, particularmente, quando estava a estudar, tinha a intenção de ser doutor. Mas, por causa da revolução , fui várias vezes preso pela PIDE. Mas, hoje, podemos observar que as pessoas que não se meteram na revolução, actualmente, vivem melhor que nós.
É um sentimento de injustiça?
Isso nem precisamos dizer. Toda a gente vê. Mas se o Governo visse a nossa condição, não teríamos nenhum problema. Mas, infelizmente, todos os sobreviventes estão nu- ma miséria.
Foi, precisamente, contra a injustiça que vocês lutaram e hoje queixam-se, igualmente, de estarem a ser injustiçados. Não é estranho?
A escravatura foi a nossa principal motivação da luta.
A vossa mobilização foi fundamental para a vitória?
Sim, claro.
E como foi a mobilização?
Através da clandestinidade, boca a boca e o segredo foi fundamental. Porque, se não fosse por esta via, não teríamos o sucesso que tivemos.
Como assim?
É que a mobilização só era feita com pessoas de confiança e interessadas em fazer a revolução, porque tínhamos também do nosso la- do muitos bufos (traidores). E ninguém poderia se ligar a esses bufos para fazer guerra contra os colonos. E muitos de nós foi pego e morto assim, por não saber com quem estávamos a lidar
Mas como funcionavam estes traidores?
Os bufos eram colocados nos bairros pelos colonos. E eram pagos para isso, para ver quem estava contra os brancos. Os que eram apanhados passavam mal nas mãos da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado).
E houve muitos casos destes?
Muitos. É que havia negros, que fingiam estar do nosso lado, que não estiveram interessados na mudança. Então, a identificação das pessoas interessadas era fundamental. E a criação de células, para a comunicação fluir de forma mais rápida, foi um marco muito importante.
Como funcionavam estas células?
Como não tínhamos, na altura, meios que nos possibilitavam uma comunicação mais rápida, então a criação de células permitia que, por via de pequenos grupos, a comunicação fluísse mais rápida.
Essas células funcionavam em todo o país?
Sim, certo. Todas as províncias detinham uma célula que funcionava na clandestinidade. Eu, por exemplo, pertencia ao grupo do Raul Deão, que foi o comandante-geral adjunto do 4 de Fevereiro. Porque o primeiro comandante foi o Paiva Domingos. Depois seguiram os chefes de grupo como o imperial, Sottomayor, Domingos Manuel, António Francisco e outros.
Mas qual era o plano estratégico com a criação destas células?
Era, precisamente, para atacar. Atacar e atacar.
E numa altura que era tudo controlado pela PIDE, de que formas poderiam avançar com esse plano de ataque?
Mesmo na clandestinidade, nós já tínhamos definido as zonas que deveríamos atacar. Mas tudo com o devido cuidado, porque qualquer erro seria fatal e teria consequências desastrosas.
E quais eram essas áreas?
Eram várias. Mas as zonas estratégicas foram os CTT ́s, Cadeia de São Paulo, Sétima Esquadra, RI 20 e Campo da Aviação. Tínhamos direccionado, igualmente, um grupo para atacar o palácio e a Casa de Reclusão.
“O MPLA deve consolidar bem as bases”
Alcançada a independência, em 1975, o país seguiu para uma guerra civil entre os principais movimentos de libertação. De alguma forma o conflito entre os angola- nos tirou o brilho da luta de libertação nacional?
Penso que não. Até porque foram lutas com sentidos diferentes. As lutas continuam até hoje. Por isso é que se vê, até mesmo hoje, cada um no seu canto. É uma forma de luta. É que cada um quer estar na- quilo em que o outro está. É o que acontece hoje em dia. Dizia Agostinho Neto, a luta contínua e a vitória é certa.
Foi esta a base da vossa luta?
Foi esta sim, mas estamos a ver que hoje tudo está diferente.
Porquê?
É que cada um está a fazer a sua luta. Um diz uma coisa e o outro faz outra coisa. Isso é barulho. Esta- mos a contrariar o próprio bem- estar do nosso país. Mas o MPLA deve ser mais zeloso e deve consolidar bem as bases.
De que forma?
Meu filho, você viu bem o que aconteceu nas eleições. Apanhamos um susto ao ver que o MPLA perdeu em Luanda.
Não é próprio de um processo eleitoral e democrático?
Meu filho, Luanda é a capital. Luanda é a base de tudo. Se agora perdemos Luanda, e na próxima como vai ser? Podemos perder na totalidade.
E como contrariar isso?
É preciso que haja trabalho, mas sem violência.
Como assim?
Não pode continuar a ver o que temos assistido. Não pode acontecer o que tínhamos visto, partido a partir a célula do outro. É uma luta baixa. Não se admite ver partidos a atacar a base e a casa do outro. Com isso não se vai a lado nenhum. Por- que imaginemos se o MPLA também for partir a sede do outro par- tido. O que seria? Mas estão sempre a partir a sede do MPLA, não pode.
Qual é o vosso olhar sobre a luta contra a corrupção?
Sei que se lançou a ideia que tem que ser assim. E nós devemos apoiar. Não devemos estar contra esta ideia. Nós, os sobreviventes do 4 de Fevereiro, estamos solidários com a luta contra a corrupção.Porque entendemos que não pode haver corrupção no nosso seio por ser um problema. É uma doença grave.
Até que ponto?
Porque você quer tudo só pra ti. E o outro fica novamente escravo. Por isso é que nós apoiamos a luta contra a corrupção e estamos dentro disso. Mas tem que haver ajuda. Fora disso nada é possível.
“O segredo estava na mobilização e na união entre nós”
Como entender que do vosso lado, com poucos meios de luta, tiveram menor baixa em relação ao lado dos colonos que já dispunham de meios mais avançados? O segredo esteve na mobilização e na união entre nós que estivemos interessados na mudança. Só para ter uma ideia, no próprio dia 4 de Fevereiro morreram poucas pessoas do nosso lado.
E da parte dos brancos?
Era impensável calcular. Morreu muita gente. Vimos isso no dia do enterro, no cemitério do Santa Ana, aonde foram a enterrar os brancos.
Com um sistema de segurança e controlo tão forte que a PIDE detinha, como é que foi possível a compra e a mobilização das catanas, que foi o vosso principal instrumento de luta?
Foi aquilo que já disse anteriormente, que tudo se deve à mobilização e unidade entre nós. As catanas e as roupas pretas, justamente, nós compramos nas lojas dos brancos. Mas durante muito tempo, porque, embora tenhamos atacado no dia 4, a planificação e a preparação final já vinha de dias anteriores. Então fomos comprando os materiais paulatinamente. E muitos dos bufos foram mortos antes mesmo dos brancos. Alguns que sabiam que estávamos a preparar as catanas, quando tentavam queixar aos chefes dos postos eram mortos. Ninguém poderia se sentir seguro ao lado de um traidor.
Qual foi a memória mais triste desta luta?
Muitas, desde a escravidão, a forma como éramos maltratados na nossa própria terra. Era muita humilhação. Tratavam-nos como animais em nossa própria terra. Foi bastante doloroso.
As mortes dos colonizadores amenizou essa revolta?
Não tínhamos outras saídas senão avançar para a revolução.
Entretanto, 62 anos depois, sentem-se com o dever efectivamente cumprido?
Sim, mas deixa-nos triste saber que não somos actualmente valorizados. É que se hoje o país está assim, graças ao 4 de Fevereiro. Nós demos o pontapé de saída para outras lutas. É preciso reconhecer o sentido da luta. A nossa revolução foi precisamente para estarmos livres do sofrimento do colono.