Talvez seja da idade, mas cada vez irrita-me mais sair de casa.
Desespero a cada amanhecer, ir à rua desgasta-me.
Odeio deixar a casa e ter de enfrentar essa cidade onde cada jornada se parece com uma ronda de um jogo mortal ao estilo da celebre série de televisão sul-coreana “Squid Game”.
Cansa-me sair à rua e deparar-me todos os dias com aquele buraco que ninguém tapa, irrita-me aquela lixeira que ninguém recolhe e, por isso, só cresce, irritam-me os engarrafamentos que me fazem levantar-se numa hora em que muitos estão a ir se deitar, irritamme as horas que perco nas paragens à espera do transporte que nunca vem, odeio as inundações a cada chuva, as ruas sempre lamacentas porque ninguém as asfalta, as valas que não escoam as águas, aborrecem-me as intermináveis filas para tudo e para nada, cansa-me o medo que sinto dos delinquentes encobertos pela permanente falta de iluminação (ou será da falta de policiamento?
Ou da falta de educação e de ocupação? Sei lá). Detesto o cheiro desta cidade e, mais detesto quando me lembro que, segundo alguns mais velhos, essa cidade já cheirou a fruta.
Irrita-me cada vez mais ir a uma repartição pública.
Odeio aquela impressão de que ninguém sabe o que está ali a fazer. Não sei se odeio mais a rudeza ou o descaso com que sou brindado pelos funcionários públicos vez sim e vez também.
Cansa-me a demora no atendimento, as idas e vindas apenas para obter a mesma resposta quando pergunto pelo documento que paguei a preço de ouro: “Ainda não está.
Tem de passar na próxima semana!”.
No final do dia, cansa-me outra vez o engarrafamento que me faz chegar à casa muito mais tarde do que devia, roubando-me assim o tempo que passaria com a família, educando os meus filhos, ensinando-os a serem pessoas úteis, de paz e de bem. Luanda é isso.
Talvez, devesse dizer: tornou-se nisso.
Num extenso labirinto onde tudo parece ter sido montado propositadamente para desorientar, para perturbar, para esgotar e desumanizar quem nela vive. Essa cidade cansa e mói.
Sinto que, cada vez que saio à rua, deixo lá ficar pedaços de mim. Volto à casa mais cansado, mais velho, mais fraco, talvez um pouco mais morto. E não é uma “morte” da qual se recupera após uma noite de sono.
Não! É uma exaustão que se amontoa, que se acumula, que não me enche, mas me dilui, me desfaz, me destrói; como um lutador que leva vários golpes e a cada golpe fica mais fraco, mais impotente, mais vulnerável, mas não pode desistir da luta.
Diz o ditado que um pequeno corte não mata, mas mil cortes podem levar qualquer um a uma morte lenta, dolorosa e angustiante.
São todos esses nossos “eternos” pequenos problemas que se amontoam, que me angustiam e me torturam lenta e dolorosamente.
É a morte por mil cortes. Sigo as notícias na esperança de encontrar nelas novidades que indiquem que as soluções para esses pequenos/grandes problemas estejam a caminho, mas tudo o que vejo são planos astronômicos, estratosféricos: um novo navio, um novo projecto de energia eólica, um novo estádio de futebol, paz em África, paz na Ucrânia, um novo satélite, ouço até mesmo planos para conquistar o espaço.
É tanta grandiosidade que não há lugar para os nossos pequenos problemas, para as nossas minudências.
Não há um plano para estancar as inundações, para melhorar a circulação rodoviária, não há um plano para tapar os buracos, para urbanizar os nossos bairros periféricos, para melhorar o funcionamento dos transportes públicos, para reduzir as filas, para aumentar a iluminação pública, para melhorar o saneamento básico e, com ele, a saúde pública.
Não há um plano para que essa cidade nos trate melhor, com mais compaixão, com mais candura.
Entretanto, ela continua a golpear dolorosa e persistentemente.
Provoca, humilha, põe-nos em permanente guerra uns contra os outros e, depois, deixa-nos morrer lentamente, enquanto ela ignora e finge que não nos vê nessa eterna agonia.
Talvez seja da idade, mas não consigo me acostumar a essa nossa forma de viver como muitos dizem e pedem. Quanto mais os anos passam, mais esses cortes me fragilizam e me desmoralizam.
E, confesso, tenho dificuldades em saber o que mais dói: se são os problemas ou a indiferença de quem devia fazer alguma coisa para os resolver. Não sei, confesso que não sei.
Mas ambos são cortes profundos que me cortam não apenas a fé e a esperança em dias melhores, mas até mesmo a esperança em tornar-me numa pessoa melhor.
Tantas são as minhas lutas, que dificilmente consigo me condoer das lutas dos outros.
Talvez seja eu um pessimista, dirão alguns, mas quando passo pelas portas dos hospitais e dos cemitérios dessa cidade, quando vejo mais um acidente brutal numa dessas nossas estradas, quando vejo as vítimas de mais uma inundação, sei, essa cidade está a matar-nos.
Quantos mais cortes teremos de suportar até que alguém decida nos salvar?
Diz o ditado que um pequeno corte não mata, mas mil cortes podem levar qualquer um a uma morte lenta, dolorosa e angustiante.
Por: SÉRGIO FERNANDES