Alguns estudantes abordados, na semana finda, por OPAÍS lamentaram o facto de ter sido necessário perderem três colegas para a Nação se interessar pelo dia-a-dia deles, tendo revelado que, no instituto, as dificuldades vão desde a suposta privação do acesso ao transporte escolar a do uso de equipamentos da escola, como são os casos da piscina, sala de informática e do internato
Embora tenham condicionado o seu depoimento com a exigência do anonimato, por temerem represálias, alguns formandos da Escola Técnica de Formação de Pescas (CE- FOPESCAS), que, na Sexta-feira, 5, viram os colegas Manuel Beirão, Vida Nicolau e Rosária Efésio morrerem afogados, durante as aulas práticas de técnicas de sobrevivência no mar da disciplina de Segurança no Mar, contaram que o seu calvário diário começa com o acesso à instituição, estendendo-se à vivência na escola. “Quando começamos a estudar, soubemos de alguns funcionários que a instituição possuía dois autocarros, sendo um para apoiar os professores e outro para prestar o mesmo serviço à classe estudantil.
Mas isso não veio a acontecer, pois nós fomos relegados a depender de motoqueiros ou taxistas de viaturas pequenas para chegar ao local de formação”, contaram os alunos, que vivem, maioritariamente, no município de Belas. Segundo eles, as consideradas digressões arriscadas, no troço da Estrada Nacional Número 100 (EN-100), bairro do Ramiro-Palmeirinhas, que, diz-se, já resultou na morte de um professor do CEFOPESCAS, obrigaram alguns pais e encarregados de educação a arrendarem residências no último subúrbio referido, a fim de minimizar os custos diários com o transporte.
Ainda sobre isso, os estudantes não pouparam histórias que dão conta de terem visto o propalado autocarro, que era para a classe estudantil, a fazer serviços de táxi, já que essa narrativa foi expressa por parentes e amigos seus, que alegam terem usado o meio para viajar no percurso da via expressa Comandante Fidel Castro, entre o Benfica, Desvio do Zango e Cacuaco. Esse cenário foi assegurado por alguns taxistas, que conduzem carros e motorizadas, a partir do mercado do Ramiro, localizado no lado contrário ao do posto de abastecimento da Sonangol, que dizem ter-se apercebido dessa façanha dos motoristas do CEFOPESCAS, quando se davam ao desafio de estender as suas rotas ao Benfica, sob pretexto de alcançarem mais rendimentos diários.
Quanto aos equipamentos da escola, os alunos falam de uma proibição expressa de acesso aos mesmos, principalmente da piscina, que, de qualquer modo, atraí a vontade dos mesmos. Sobre esse equipamento relataram situações de visitas ao CEFOPESCAS, em que os dirigentes do instituto se obrigavam a encherem com água comprada de camiões-cisternas, pagos a preços dobrados ou mais. Privações do género atribuíram também à limitação do uso da sala de computadores.
Relativamente ao acesso a estes meios, os formandos do estabelecimento do nível secundário do I e II Ciclo, que forma em cursos de ciências pesqueiras, falaram acerca das obrigações que a direcção do instituto lhes tem imputado, para não transparecer que algumas coisas correm mal. “Já houve vezes em que a televisão apareceu na escola e os professores foram orientados a pedirem- nos para não falarmos dos problemas que vivemos na escola, mas mesmo assim, um dos colegas que foi perguntado por um jornalista sobre isso, pediu para não gravarem o seu nome nem registarem imagens dele”, disse um dos estudantes.
Motorista prático ́.
Os jovens manifestaram, finalmente, o desejo de verem a escola a melhorar os aspectos que concorrem para uma formação de qualidade. Aliás, foram unânimes em afirmar que a instituição de ensino foi concebida para tal, pelo facto de albergar o nível secundário do I Ciclo, com classes entre a 7ª e a 9ª Classes) e o secundário do II Ciclo, com classes da 10ª a 12ª, com a particularidade de ter todas as classes com cursos. O internato é outro elemento que faz crer os alunos do CEFO- PESCAS que a escola foi projectada para formar técnicos do sector das pescas e do mar para ajudar o país a desenvolver esse sector.
“Era para os alunos ganharem técnica de sobrevivência no mar”
“As aulas práticas realizadas de Segunda à Sexta-feira (de 1 a 5 de Maio) eram para os alunos ganharem técnicas de sobrevivência no mar, já que é mesmo esta a denominação da sessão que nos levou à praia do Km-32, um tema programado na disciplina de Segurança no Mar. De Segunda a Quinta-feira, 4, tudo correu bem com estudantes de outros cursos, mas, no último dia, que cabia ao grupo dos pré- finalistas, aconteceu o inesperado”, começou por dizer um dos integrantes desse grupo.
Em seguida, contou que, no dia do incidente, Manuel Beirão já tinha cumprido uma parte da ses- são, mas, quando este notou que um colega e uma colega estavam a afundar-se, condoeu-se com a situação da rapariga que, contrariamente ao rapaz, que ainda se esforçava em mover os braços, para escapar do perigo, parecia ter-se rendido à força das águas do mar”, explicou o estudante, tendo acrescentado que o ‘salvador’ se fez em direcção à vítima, mas daí não saiu com vida.
O entrevistado informou que os três colegas desapareceram totalmente, tendo aparecido, algum tempo depois do incidente, o corpo de Rosária Efésio. Segundo ele, o corpo do Manuel apareceu já no período da tarde de Sexta- feira, 5, enquanto o do Vida Nicolau foi avistado no dia seguinte. Para os alunos, a organização dessa sessão lectiva devia contemplar uma solicitação prévia (e presença) dos Serviços de Protecção Civil e Bombeiros e dos de Emergência de Saúde, de modo a prevenirem-se quaisquer situações anómalas.
Manuel considerado um ‘santo’ em acto e potência Durante as cerimónias de enterro de Manuel Beirão, na manhã de Quarta-feira, 10, no cemitério do Benfica, a família do malogrado consentiu que a sua emoção estava dividida entre sentimentos de tristeza e de algum conforto. A primeira emoção resultava do facto de terem perdido um jovem, que ainda tinha muito a contribuir para a sua família e para a sociedade, sendo que, o sentimento de conforto, era devido ao heroísmo demonstrado, na praia do Km-32, ao tentar salvar os colegas.
Entretanto uma missionária afecta à Igreja Católica, a quem se deu a palavra para o respectivo elogio fúnebre, classificou Manuel Beirão como um ‘santo’, em acto e potência, ainda que essa classificação não venha das instituições religiosas de direito colectivo. “Tem maior vida quem dá a vida aos ou pelos outros. Por isso, a mensagem que o Manuel Beirão nos deixa é de termos coragem de dar a nossa vida pelas dos outros, ou seja, salvarmos vidas”, realçou a freira, que disse ter vindo da província do Cuanza-Norte, para se solidarizar com a família enlutada.
Pai lamenta indiferença da direcção do CEFOPESCAS
Visivelmente descontente, o progenitor de Manuel Beirão lamentou o facto de o professor que dirigiu as aulas práticas e a direcção da escola do seu filho não terem assumido a responsabilidade de informar sobre o passamento físico do aluno, que já frequentava a 12ª Classe. “Triste foi saber da morte do meu filho de colegas e amigos e mais tarde da imprensa, com a agravante de nos documentar- mos sobre os pormenores do incidente mortal a partir de um jornal da nossa praça”, contestou o encarregado de educação, para quem uma instituição escolar deve estar preparada para enfrentar qualquer circunstância do género.
Na senda da classificação dada pela missionária Católica, o chefe da família Beirão, que, por sinal, monitorava as cerimónias do “adeus” ao seu filho, considerou- o como um herói, tendo atribuído à sua atitude de querer salvar os colegas um acto de alta nobreza. Por sua vez, a avó do malogra- do confessou que, dificilmente, vai conseguir lidar com a ausência do seu neto, tendo, por isso, pedido que se responsabilizasse o professor. “Esses professores de- viam ser presos. Eu quero justiça”, disse, titubeando, não tendo podido evitar cair em pranto.
Gigante ́escolar do Ramiro
Aquando do seu arranque, estava patente que o CEFOPESCAS, os dirigentes tinham deixa- do claro que a escola ia funcionar com 163 trabalhadores, entre os quais 81 professores. O projecto incluiria um labora- tório especificamente para a área académica, que compreenderia o ensino técnico profissional, entre a 9ª e a 12ª classe. Ao que se sabe de fontes do Ministério das Pescas e Recursos Marinhos, o mesmo é fruto da cooperação entre Angola e Espanha, tendo o financiamento de um Banco Espanhol, que, inicialmente, contemplou a formação de 19 quadros docentes angolanos no referido país do continente europeu.
A instituição escolar é somente a maior, no distrito do Ramiro, que não perde muito para outras obras imponentes do sector, instaladas na capital do país. A estrutura ocupa uma área total de 37 mil metros quadrado. Com- porta secções como secretaria, direcção, escritórios, laboratórios e salas de navegação e pesca, além de 24 residências do tipo T3, para professores, bem como 17 salas de aula e 156 dormitórios, para albergar 311 alunos. O jornal OPAÍS tentou contactar a direcção da escola, mas sem sucesso.