Ausente dos grandes palcos há três anos, o cantor, compositor, violinista e docente universitário, Carlos Lopes, autor dos álbuns “Filipa de Angola”, “Angola, Mares e Lagoas” e “Angola, Noites e Luas”, em vésperas da apresentação da quarta obra com o título “Folhas Secas”, fala a OPAÍS sobre o seu novo projecto ligado a antiguidades, localizado na Terra do Jacaré Bangão, Bengo
Carlos Lopes está sempre presente no meio artístico, mas ausente dos grandes palcos. Quais são as razões?
Eu tenho dito às pessoas que a minha actividade principal não é a música, vivo de outras tarefas que tenho. Mas, também, não estamos a atravessar uma boa fase, e eu procuro aquilo que é mais importante para garantir a minha própria sobrevivência. Mas, sempre que posso, procuro o espaço que eu próprio oriento. Tenho tocado ao vivo. Só que não disponho de tempo, muitas das vezes, para ir a este espaço.
Como está em termos de projectos?
Projectos há muitos, mas, neste momento, o meu foco principal está mais ou menos fora da música e está também ligado à Cultura. É mais ao nível da província do Bengo, dentro do espaço turístico que eu tenho. Estou em colaboração com pessoas mais chegadas a procurar construir um espaço ligado a antiguidades. Estou a fazer recolha de muitos equipamentos antigos, nas mais diversas vertentes, onde se inclui também os instrumentos musicais para que as pessoas possam ver coisas antigas, onde se inclui também, repito, a música.
Olhando para o projecto, inclui também acção formativa em vários os domínios. Como está este segmento?
Quanto à questão do ensino, tenho estado a ultimar um doutoramento que estou a fazer. Esta é uma das minhas prioridades. São os projectos que tenho e, em relação à música, é terminar o disco que estou a fazer. Esperamos que durante este ano isso possa acontecer.
Qual dos três projectos é prioritário?
Neste momento é o término do doutoramento. Depois disso, havemos de ver. Paralelamente ao doutoramento, são feitas outras coisas no âmbito turístico, incluindo a vertente cultural, porque dentro desses espaços de artigos ligados a antiguidade, conforme eu disse, envolve instrumentos musicais.
Que artigos tem já recolhido?
Vários. Tenho um espólio da falecida Lourdes Van-Dúnem que me foi ofertado pela própria filha. Portanto, quero arranjar um espaço para expor e as pessoas verem alguns instrumentos que ela tinha e há ofertas que muitas pessoas têm estado a fazer. Por exemplo, tenho uma grande colecção daqueles discos de vinil do tempo antigo que irão estar lá expostas com gira-discos, para pessoas que queiram recordar determinados temas que eventualmente não foram digitalizados e poderem também ouvir. Este é um projecto que está em curso, não está a ser pensado.
Qual é a dimensão desse espaço de antiguidades?
O museu está a ser construído de forma a poder ser ampliado gradualmente. Mas, numa fase inicial, não vai ter uma grande dimensão, porque isso também tem custos. A dimensão inicial é mais para acomodar o que nós temos. Em termos de dimensões, estamos a falar de qualquer coisa que possa ser o espaço de 10 por 4 metros para aí, numa primeira fase, 10 por 20 metros, porque o mesmo vai ser seleccionado.
Como estará estruturado?
O museu terá a parte ligada à tecnologia: são aqueles equipamentos usados no tempo antigo para as crianças verem, e aí vai-se incluir também a área das telecomunicações, com equipamentos que eram também utilizados nas comunicações nos tempos que já lá vão. Depois terá a parte mais cultural: estamos a falar da parte da música, a discografia e a seguir a parte de instrumentos musicais.
Falando de tecnologia, o que mais poderemos encontrar, além do que acaba de destacar?
Cassetes e gravadores que já estão em minha posse, quer em bobines e outros meios que eram usados naquele tempo antigo. Portanto, as crianças poderão ter a noção da evolução dos processos de gravação que foram feitos. Começando pelo gravador a bobines, nagras, passando pelo gravador a cassete, disquetes, chegando até a actualidade para as pessoa s verem como é que as coisas evoluíram. Isso é muito importante.
Como é que a população do Bengo e outras estão a encarar este princípio?
A população do Bengo vê bem porque, dentro do âmbito do Doutoramento, o trabalho que eu estou a fazer ao nível de investigação é algo que vai beneficiar certamente a própria população, que tenta perceber a importância que tem o uso do biogás para o desenvolvimento.
Qual é a ideia inicial do projecto?
A ideia do projecto é sensibilizar as pessoas de que há outras fontes de gerar energia, que não são obrigatoriamente o abate das árvores para podermos utilizar a lenha e o carvão. Sabe que o abate das árvores tem uma influência negativa para as alterações climáticas. E isto é um problema do momento e, neste sentido, a população vai tendo o seu benefício. Da população pro- curo que haja sempre uma colaboração da sua parte, na recolha desses eventuais equipamentos do tempo antigo, que ainda possam eventualmente existir, para contribuir para o reconhecimento deste espaço de antiguidades.
Desta forma, como tem estado a promover o Turismo Cultural no referido espaço?
As coisas vão andando, nós praticamos o chamado Turismo Rural, porque o local não é um espaço de luxo. É um lugar para aquelas pessoas que gostam o contacto directo com campo, com o ma- to, etc. Quanto a esse aspecto, tem havido algum movimento atractivo, pese embora todos nós saibamos que também o turismo é um dos sectores que também não vive de grande saúde. Tirando pequenas sessões que aparentemente aparecem aí, vou fazendo alguma coisa, sobretudo, nós, naquela zona. É preciso ter em conta que é uma zona que está isolada no meio do mato. Algo que nos penaliza bastante é o facto de o local não ter energia eléctrica. Temos que substituir com geradores e isso tem custos elevados e impede um normal desenvolvimento.
Quais são os instrumentos musicais que poderão enriquecer o espólio?
São, sobretudo, instrumentos de percussão, mas também existem outros tipos de instrumentos, como é o caso da marimba, o kissanji, instrumentos que se fazem a recolha. Chamo a atenção que nesta recolha também estão a ser incentivadas as crianças em criar novos instrumentos musicais, principalmente a caixa de ressonância.
O que têm as crianças feito no quadro desta iniciativa?
As crianças aderem, precisam de ocupação e são havidas em aprender. Querem os materiais e já se co- meçam a fazer algumas marimbas utilizadas como caixa de ressonância. A própria cabaça não é nenhuma novidade. Isso já existe, mas estamos a incentivar também as crianças a reproduzirem alguns instrumentos musicais no âmbito desse projecto. É preciso que lhes seja dada uma oportunidades. É o que nós, mesmo com os parcos recursos, temos procurado fazer.
Como é que os progenitores dessas crianças encaram o projecto?
Muito bem. Os miúdos estão ali, às vezes, sem alternativa, é uma forma de aprendizagem. Um individuo que está a construir um instrumento musical é obriga- do a trabalhar com ferramentas que provavelmente nunca pegou ou nunca soube o seu nome, ferramentas que, por exemplo, ser- vem para construir algo que pode ser útil para as suas próprias casas. Construir um banco, valorizar mais o material local e abrir os olhos das pessoas de que estes materiais podem ser usados para construir outras coisas que são uteis às próprias famílias.
Voltamos a falar da música, mesmo não sendo a sua actividade principal. A quanto tempo está fora dos grandes palcos?
Palcos, assim com uma certa dimensão, admito que esteja ausente há mais de três anos, em espectáculos um pouco mais abrangentes.
Como tem articulado a actividade artística e a empresarial?
Eu tenho sempre que conciliar as duas coisas. Conforme eu disse, a minha propriedade não é efectivamente a música, mas tenho estado a gravar. Eu estou a gravar um novo trabalho musical. Como sabem, já tenho três obras editadas e está a ser preparada uma quarta. Mas, essa quarta está a ser feita nas calmas e sem grandes pressões.
Qual será o título da obra e quantas faixas terá?
O título, em princípio, é “Folhas Secas”, e faixas acredito que o disco não terá nada mais de 10. Sabe que a própria comercialização da música tem mudado muito e há artistas que tentam optar em não produzir o CD. Normalmente, ficam em plataformas digitais. Há quem grave até só quatro músicas e promove essas quatro nas plataformas digitais. Vemos que, actualmente, o CD está praticamente em desuso. Isto também é algo que eu depois irei decidir melhor, como é que irá ficar. É bem possível que este álbum até não seja editado em CD, mas seja colocado em plataformas digitais num outro formato. Porquê “Folhas Secas” “Folhas Secas” porque, infeliz- mente, nos últimos anos temos vivido situações não muito fáceis, digamos assim, em que encontramos mais folhas secas pelo caminho do que verdes. Esta é mais ou menos a razão pela qual eu decidi dar este título.
“Estou em crer que foi praticamente a música do Kuito que me projectou”
Quando é que começou a gravar o disco e com que participações conta?
Este novo álbum começou a ser gravado no ano passado. A decisão dos músicos a participar vai variar de tema para tema, como normalmente costumo a fazer. Normal- mente nas minhas gravações não são obrigatoriamente os mesmos músicos que acompanham todos os temas. Vai haver uma escolha criteriosa em colaboração com o produtor, no sentido de seleccionar os músicos, música à música. Irá funcionar assim.
Onde será finalizado o disco?
É possível que parte da gravação final seja feita aqui em Angola. Nós já temos até uns bons estúdios, mas também há a outra parte feita lá fora. Lá fora é mais pela disponibilidade de alguns músicos em determinadas categorias. Nós estamos a viver aqui um fenómeno interessante, é que os melhores músicos africanos, neste momento, em que se incluem alguns angolanos, vivem na Europa e a opção, por vezes, em ir gravar lá fora, não é por ser lá fora. Por vezes até é mais económico nesse aspecto, mas também porque o músico em determinadas categorias, assim com um certo nível, a maior parte deles está mesmo no exterior. Repare que os músicos africanos, na sua generalidade, vivem em França, infelizmente.
Quais são os estilos musicais e línguas que o disco irá congregar?
Em princípio, vai ser em Umbumbu, em Nyaneka Humbe e os estilos vai-se priorizar sobretudo o Semba, o Kilapanga, algumas baladas. A viagem será mais ou menos por aí.
Como está a ser feita a recolha desta tradição oral?
É sempre uma observação. Como sabe, eu não sou um indivíduo de ficar aqui pela cidade. Normalmente entro muito em contacto com o povo do campo, oiço algumas coisas ligadas à tradição, e, de maneira geral, gosto de fazer uma mistura, uma mescla entre tradicional e as outras linhas que localmente existem para construir a música.
Tem uma música dedicada ao Kuito – Bié. Em que circunstâncias escreveu a mesma?
Esta música do Kuito, quando foi feita, ainda não havia paz. Foi quando eu estava a prevê-la. Na altura em que foi gravada a música nós, infelizmente, ainda está- vamos em situação de guerra. Eu já não vou ao Kuito, se calhar, há uns 6 anos. A última vez que lá estive foi mais ou menos há 6 anos. É possível até que esta música reapareça neste novo trabalho com uma nova roupagem, porque acaba por ser uma imagem de marca. Estou em crer que foi praticamente a música que me projectou e há esta ideia de nós refazermos esta música, mantendo mais ou menos a sua cadência, mas com uma nova roupagem.
De São Filipe, o que podem esperar os seus fãs ?
Até ao momento não está prevista uma música propriamente dedicada a Benguela. Mas, ainda faltam algumas coisas para se fazer. É possível que surja alguma coisa. Que avaliação faz do actual momento da música angolana? Eu, nos últimos tempos, não sou um individuo da noite, mas sinto que, pelo menos, os músicos vão tendo mais oportunidades para tocar em vários espaços. Refiro-me mais concretamente àquelas configurações de bandas, não de grande dimensão, às vezes são duos, trios ou até mesmo um indivíduo sozinho a tocar a sua base do violão. Verifica-se ao nível de restaurantes alguns passos liga- dos à restauração hoje dão emprego, dão actividade a alguns destes músicos, mas também sei que há músicos que continuam a viver com dificuldades. Dizer que nós estamos neste contraste. Há pessoas que se vão organizando minimamente, mas, em contrapartida, há quem não tenha grandes oportunidades. Portanto, esta é a situação real. Há algo que é observável. É a ida de muitos músicos, sobretudo jovens, para o interior do país. Isto tem estado a acontecer. Há muito bons músicos que nós temos e dia-dia vou recebendo informações que estão no exterior ou têm ido para o exterior.
O país viveu aproximadamente 3 anos de confinamento social imposto pela Covid- 19. Como foram para si esses momentos?
Foram sempre muito maus, como deve imaginar, porque todas as actividades a que eu estou liga- do tiveram praticamente que parar. A empresa que eu dirijo praticamente esteve encerrada a sua actividade, a área turística ali no Bengo, a mesma coisa, o ensino trabalhava-se também a meio gás. Portanto, este foi um processo que não foi fácil, pelo menos para mim e admito que para a maior parte dos angolanos.
Neste novo trabalho discográfico, há alguma música inspirada na Covid- 19?
Há músicas que foram feitas durante esse período da Covid. Claro, que, eu na música, não falo da Covid, falo de outras coisas. Mas, essas inspirações vieram dentro desse período em que um indivíduo estava mais fechado em casa e tinha que arranjar alternativas para nós ocuparmos o nosso tempo, aquele tempo livre.
Percurso artístico
Cantor, compositor, violinista e docente universitário, nascido na cidade das Acácias Rubras, Benguela, em 1957, iniciou-se na música em 1965, naquela cidade, de- pois de ter participado de actividades culturais que incluíam a música, as artes cénicas e a dança, tendo integrando um dos grupos escolares. Com uma longa e excelente carreira artística, marcada por variadíssimas actuações em diferentes palcos do país e do estrangeiro, Carlos Lopes apareceu pela primeira vez ao público, em 1965, no Cine Monumental, na cidade de Benguela, quanto tinha apenas 8 anos. Foi numa tarde inesquecível, que continua gravada na sua memória.
Na altura, o pequeno cantor sentiu-se como um príncipe por envergar um traje especial, de qualidade superior ao que estava habituado, emprestado pela professora. Este incluía sapatos envernizados e o cantor sentia receio de pisar o chão por ser algo muito fino e raro na época. Na sua actuação, a inspiração foi tal que acabou por cantar além da canção que lhe estava destinada. Uma das canções cabia ao seu colega. Houve muitos aplausos e inspirado o pequeno cantor não queria mais deixar o palco.
A paixão pela música remonta à sua infância, incentivada pelo ir- mão mais velho “Peco”, um entusiasta da família Chikuamanga, uma dinastia de músicos benguelenses, muito conhecida e respeitada na época. Autor de três álbuns, dos quais “Filipa de Angola”, uma homenagem à sua mãe e a todas as mães sofridas de Angola, lançado em 1998, incluindo os temas “Kanucos da Banda, “Luanda Meu Amor”, “O Sorriso de Filipa”, “Um Bouquet de Flores”, “Pianista”, “Madrugar em Festa” e “Terra das Acácias e Kuito”. O segundo, intitula-se “Angola, Mares e Lagoas” e o terceiro, “Angola, Noites e Luas”.