Entre o Norte e o Sul existem fronteiras culturais que não podem ser, de forma alguma, ignoradas. Estas definem formas «de ser e de estar» características dos povos que ocupam as duas geografias.
O Norte, mais frio e desenvolvido, e o Sul, mais quente e em vias de desenvolvimento, partilham heranças históricas que foram, inicialmente, marcadas por um longo processo de contactos comercias e de trocas de mercadorias que culminariam, nos séculos XVII e XIX, numa relação que conheceu mudanças extraordinariamente surpreendentes. Tratam-se, pois, de mudanças que deixaram de privilegiar o domínio estritamente comercial ou político-diplomático para se encaixar numa dimensão que passou a traduzir uma relação entre «dominados, isto é os do Sul», e «dominadores isto é os do Norte» tendo no centro da relação a força e a técnica como elemento de vantagem que, estrategicamente, favoreceram o Norte.
Com a institucionalização dos regimes coloniais, por parte do Norte e após a dominação dos povos do Sul, a construção dos saberes no Sul conheceria, entretanto, o começo da estagnação cujas consequências viriam, inevitavelmente, a se reflectir fundamentalmente na dimensão económica, cultural e sobretudo política de cada sociedade do Sul.
Por esta razão, a influência dos saberes do Norte começou a modificar, tão logo se verificou o total controlo do Sul, a forma de ser e de estar dos povos (Sul) tendo o processo de colonização exercido um papel determinante para a concretização deste desiderato.
Nesta ordem, a nossa abordagem, em termos de delimitação, para o presente texto, vai centrar-se aos países da África Negra uma vez que a noção que se tem do Sul é, efectivamente, bastante abrangente podendo estender-se à outros países que se encontram fora da geografia africana.
A nossa orientação se vai prender as seguintes questões: 1 -Que influências têm exercido os saberes do Norte na construção dos saberes do Sul? 2 -Será que as mesmas influências do passado interferem na actual realidade dos países do Sul?
A partir do momento é que o Norte dominou o Sul se verificaram mudanças profundas ao ponto de as influências dos primeiros se tornarem dominantes e determinantes nas relações que passaram estabelecer.
Tudo isso se deveu, em parte, devido as visões que os primeiros antropólogos do Norte tiveram dos povos do Sul considerados, por aqueles, de primitivos e selvagens ignorando, por completo, os saberes que predominavam no seio destas comunidades.
De acordo com Boaventura (1987) “O sujeito era o antropólogo, o europeu civilizado, o objecto era o povo primitivo ou selvagem”.
A visão destes antropólogos não se afastava de preconceitos e estigmas próprios de uma época em que o relativismo cultural não se fazia sentir.
Por esta razão é que Ngoenha (1993) relembrou-nos de que “ (…) a ciência do século XIX colocou o negro, perto dos antepassados de todos homens, os primatas, identificando assim o negro com o grau zero da evolução humana, na qual o homem branco representa o apogeu”.
Esta falta de alteridade fez com que imensos cientistas do Norte acreditassem, inclusive, que o negro africano não tivesse história.
Keita (2015) explica-nos que “ as primeiras ideias sobre a não historicidade das sociedades africanas foram expressas pelo filósofo alemão de grande renome G.W. Friedrich Hegel (…)”.
De acordo, ainda com Keita (2013), para “(…) a filosofia ocidental, a África Negra se encontraria excluída do processo histórico Universal”.
Os cientistas do Norte edificaram, nesta ordem, uma imagem difícil dos negros africanos que viria ter, sobretudo nos séculos XX e XXI, uma enormíssima influência nas motivações de racismos fundamentadas na ideia de inferioridade «do homem negro».
Ngoenha (1993) tentou explicar está ignorância manifestada pelos investigadores do Norte quando relembra o seguinte: “ a partir do século XIX para os europeus tornou-se literalmente impossível aceitar, que os povos dos outros continentes pudessem ter um espírito científico”.
Ou seja, desacreditava-se os saberes construídos em outras realidades culturais e a África, ou seja no Sul, se encaixava nesta percepção ocidental.
Por isso é que percebe-se a posição de Boaventura Sousa Santos quando afirma que “a ciência e, em particular, as ciências sociais assumiram, assim, a condição de ideologia legitimadora da subordinação dos países da periferia e semiperiferia do sistema mundial (…).
A perspectiva defendida por Boaventura Sousa Santos remete-nos a compreensão de que a ausência da ética tornou a ciência num produto do capitalismo uma vez que se revelou e em muitos casos sente-se isso como a ideologia legitimadora da subordinação conforme defendeu o investigador.
Não é tão difícil concordar com Cláudia Fonseca e Guilherme de Sá (2011) quando defendem que “A ciência deixa de ser um corpo abstracto de saberes que opera à luz da razão (…).
Esta interpretação dos investigadores converge com o ponto de vista de Boaventura Sousa Santos na medida em que reconhecem ausência de algo extraordinariamente relevante na ciência: a ética.
Para além da falta de alteridade que se identificou nos primeiros estudos antropológicos sobre o homem negro e o Sul, a falta de ética e o espírito essencialmente etnocêntrico dos investigadores do Norte ajudaram a influenciar a subjugação dos saberes do Sul e tornaram a ciência num instrumento privilegiado do «poder político».
É, contudo, neste «poder político», concentrado quer na Ciência quer na técnica produzidos no Norte, sem obviamente esquecerse da capacidade militar, que se começou a colonização do Sul (África negra).
Como os países do Norte institucionalizaram o regime colonial em boa parte dos países do Sul e procuraram, por sua vez, manter um sistema de relações sociais baseadas na opressão e não na observância dos direitos e liberdades fundamentais, as influências dos «saberes construídos no Norte» e introduzidas no sistema de educação eram inevitáveis tendo, a partir daí, se verificado um amplo processo de aculturação «planeada» como estratégia de reforçar a dominação dos povos do Sul.
Estamos, pois, a falar de contactos que podem ser consideradas como sendo dramáticos uma vez que se tratava de choques constantes entre o colonizador, o opressor, e o colonizado o oprimido.
Sabemos que este tipo de relação traduzia-se, evidentemente, num conflito cultural e Huntington (2009) alerta-nos que “os conflitos culturais mais perigosos são os que se geram nas linhas de fractura entre civilizações”.
Contudo, os povos do Sul não tiveram grandes alternativas na preservação de parte fundamental dos saberes gerados pelas sucessivas gerações das suas sociedades.
O tráfico de escravos africanos, primeiro, e a colonização, depois, introduziram mudanças profundamente marcantes cujas influências colocaram «o negro africano» numa situação de «dependência» ou, se quisermos, de «estagnação» em termos de desenvolvimento dos saberes essencialmente do Sul.
O longo processo colonial fez questão, no campo político estratégico, de interromper o desenvolvimento dos saberes africanos e promover, em larga medida, os saberes construídos a partir do Norte que visavam transformar o homem do Sul, negro africano, num produto «acabado ou por se acabar da civilização ocidental».
O período pós-colonial marca um momento essencialmente relevante nas sociedades africanas.
É o período em que se registam as independências.
O que se percebe, de um modo geral, é que, em termos de «saberes», as independências não deixaram de revelar «dependências extremas»; ou seja, mesmo com à criação de unidades políticas soberanas, os Estados do Sul continuaram «dependentes» do Norte no que os saberes dizem respeito.
Todos os movimentos independentistas que assumiram o poder político no Sul definiram o seu sistema de governo com base nos alicerces da filosofia política do Norte e o mesmo se verificou quer no modelo económico quer no sistema de educação definidos.
Parte considerável dos governantes do Sul definiram uma política de formação de quadros no exterior, ou seja no Norte, para estruturarem o seu processo de desenvolvimento e projectar o quadro de relações com outros povos.
Por mais incrível que pareça os saberes locais, isto é do Sul, não foram, de todo ou em parte, valorizados pelos próprios africanos.
As influências dos saberes do Norte, interiorizadas durante o período colonial ou nas Universidades do Norte, continuaram a servir de referência fundamental para estruturar a vida colectiva no Sul.
Mesmo ao nível do ordenamento jurídico-constitucional dos países do Sul notou-se, em termos muito concretos, marcas muito profundas das experiências do Norte na mentalidade dos cultores de direito do Sul.
O grande desafio, neste contexto, passou pela coabitação entre normas e valores Norte, isto é ocidentais, e as normas e valores do Sul.
Na selecção das normas e/ou regras jurídicas que deveriam orientar a vida colectiva, os governantes do Sul privilegiaram coabitação entre o «Direito positivo, produto da jurisprudência ocidental do Norte », e o «Direito costumeiro – produto da jurisprudência africana.
Estas duas realidades normativas são respeitadas mas as entidades do Estado (do Sul) passaram a aplicar, oficialmente, o direito positivo deixando, para as autoridades tradicionais africanas, o Direito costumeiro.
No fundo, o Direito costumeiro não tem grande peso jurídico no quotidiano africano sendo, apenas, um direito meramente simbólico que deve subordinar-se aos vários princípios e normas qua alicerçam o Direito positivo.
Para além desta valorização do pensamento jurídico do Norte introduzida no ordenamento jurídico dos países do Sul a forma como se faz política não deixa, entretanto, de espelhar um claro reflexo dos saberes e/ou influencias do Norte.
Essas influências continuarão presente devido, sobretudo, ao facto de os povos do Sul manterem a língua oficial dos vários países do Norte, antigas potências colonizadoras o que efectivamente – reforça a presença cultural do Norte na vida sociocultural do Sul.
Contudo, cumpre sublinhar que mesmo no período pós-independência o Sul continuou dependente e continua até ao presente contexto do Norte dominador.
Há um grupo muito vasto de investigadores do Sul que lutaram para resgatar as identidades «esquecidas» mas o advento da globalização parece ter reforçado mais, ainda, a presença do Norte nas sociedades do Sul no que a construção dos saberes diz respeito.
A globalização não parece, portanto, ser, simplesmente, o desenvolvimento tecnológico nas comunicações e trocas comerciais como se procura fazer crer.
A globalização parece ser, no fundo, um mecanismo muito mais letal na colonização dos saberes locais quer dos países do Sul quer de outros que não fazem parte do mundo ocidental.
Logo o futuro de África negra, ou seja do Sul, continuará condicionada por mais tempo pelos saberes construídos sistematicamente no Norte e a globalização jogará, nesta direcção, um papel fundamental sobretudo na tentativa de universalizar os valores do Norte.
Bibliografias consultadas Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 7-23, jan./ jun. 2011; HUNTINGTON, Samuel P (2009).
O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Lisboa, Gradiva, 4ª Edição; NGOENHA, Severino Elias (1993). Filosofia Africana das Independências às Liberdades, Maputo, Edições Paulistas África; KEITA, Boubacar Namory (2013).
Contribuição Endógena para a Escrita da História da África da África Negra, Luanda, Mayamba; SOUSA SANTOS, Boaventura de (1987). Um Discurso sobre as Ciências; Edições Afrontamento; Porto; 1988.
Boaventura Sousa Santos et al, p.2: informação disponível em http:// www.ces.uc.pt/publicacoes/res/ pdfs/IntrodBioPort.pdf
Por: LUTINA SANTOS