Aos 80 anos de idade e mais de 60 dedicados à música e à preservação da cultura angolana, o músico, compositor e historiador, Carlos Lamartine, em entrevista ao jornal OPAÍS, disse ter alcançado o patamar mais alto da sua vida como artista e cidadão ao colocar, no mercado, um livro que retrata o percurso da música popular angolana e de todos aqueles que o acompanharam
São mais de 60 anos de carreira activa e 80 anos de vida. Que avaliação faz do seu percurso?
Oitenta anos não são 8 dias. Oitenta anos de vida significa um percurso longo, um percurso de muitas vivências de que resultaram um conjunto de experiências, sendo umas positivas e outras negativas, e se calhar umas incompreensíveis outras compreensíveis.
Como assim?
São de facto 80 anos de uma vida marcada não só pelas contradições do mal, mas também pelas contradições do bem.
Pelo menos considera 80 anos de uma vida bem vivida?
Não posso reclamar tal qual podem reclamar os pobres.
Por quê?
Porque eu tive o privilégio de ter ido para a escola, o privilégio de ter um bom emprego, embora tivesse que atravessar alguns desertos ao longo da minha carreira e de cidadão. Mas acredito que até ao momento acabei bem.
O que o faz pensar assim?
Ao lançar o meu livro, penso que alcancei o patamar mais alto da minha vida como artista e como cidadão.
Porquê?
Porque ao colocar o meu livro no mercado, olhando para a qualidade do mesmo, penso ter realizado um dos meus objectivos.
Em que consiste o livro “Ser Poeta em Harmonia e Silêncio Com contos e cantares Nos Versos em Poesia”?
Está a dizer que a escrita passou a ser, a dada altura, uma necessidade de todo o seu percurso como homem e artista? Penso que sim. O livro surgiu da necessidade de deixar escrito um modelo de preservação da cultura nacional.
Até que ponto?
Partindo da ideia da compilação de todas as minhas obras discográficas e de alguns poemas com tendências musicais que eu tenho elaborado no meu trabalho para deixar em forma de livro para as futuras gerações saberem, compreenderem e conhecerem o espírito de Carlos Lamartine enquanto músico, compositor, artista, escritor, e, acima de tudo, um cidadão que gosta das artes e da cultura.
Considera este principio um legado a deixar ao país?
Sim. Sou um cidadão que gosta do país, da preservação cultural do país, da cultura angolana, particularmente a cultura africana de raiz.
Depois do lançamento, está satisfeito com o alcance da obra?
Sim. O livro foi feito sob a orientação de Arlindo Isabel, o director da Mayamba Editora.
Foi lançado no dia 29 de Março, precisamente no dia do meu aniversário natalício dos meus 80 anos de vida, dos quais cerca de 70 dedicados à cultura.
Ao folhear o livro, que memórias as pessoas poderão encontrar de todo o seu processo?
Vão encontrar o Lamartine quando começou a interessar-se pela cultura angolana devia ter os seus 10 ou 11 anos e já cantava e tocava batuque.
Estava inserido em alguns grupos do bairro da minha juventude entre o Bairro Indígena, o Marçal, o Bairro Operário e mais tarde o Sambizanga e o Rangel.
Qual foi a reacção do público em relação à obra?
Não tenho conhecimento de como foi a reacção exterior, porque o livro foi lançado no dia 29 de Março.
Naturalmente que há uma certa informação através dos órgãos de comunicação e acho que neste momento deve ser um motivo de admiração e de espanto para muita gente.
Porquê?
Um músico como Carlos Lamartine, angolano, nascido em Benguela, de repente tornou-se cantor em Luanda e lançar um livro.
Normal, não?
Não, porque quem lança livros no conceito da nossa civilização, aqui em Angola, é um erudito, um escritor, se calhar devem estar admirados por isso.
Mas olhando para o feedback que recebe, nem que seja o minímo, acredita que as pessoas receberam a obra da melhor forma?
Aqui em Luanda, de uma forma geral, o livro foi recebido com muita satisfação, porque julgam os meus admiradores que o Carlos Lamartine é de facto um angolano com respeito pela cultura nacional e trabalha no sentido de deixar, às novas gerações, toda uma gama dos seus conhecimentos.
É o deixar do legado?
Exactamente, porque o Carlos Lamartine tem comparticipado na formação académica de muitos jovens que o consultam, quer na Liga Africana, quer em casa, para que transmita subsídios culturais de conhecimento.
Com isso acredito que eles receberam com muita satisfação e com muita admiração esse livro, porque vai complementar um conhecimento que eles vão adquirindo ao longo dos dias, ao longo das jornadas de trabalho, de estudo e que não são fáceis de adquirir porque não é usado do ponto de vista bibliográfico.
Os fazedores de cultura poderão encontrar, no livro, subsidios para a comprensão cultural que se pretende?
Acredito que sim. Portanto, o livro tem cerca de 365 páginas, mas neste momento não lhe vou dizer taxativamente a estruturação em termos de capítulos, de números, de colocação dos temas em função das páginas.
Olhando para temática musical, é uma fonte de conhecimento para as novas gerações?
O livro tem temáticas musicais, cujos discos são aqueles que eu editei desde o período colonial, onde tenho cerca de quatro singles com duas músicas em cada face.
Tem o primeiro feito na Angola Independente.
Angola Nº 1 com músicas revolucionárias que contribuíram para a mobilização da população para a educação, do ponto de vista político e patriótico.
Depois tem um conjunto de CDs que fui fazendo ao longo desses anos, desde 1996 até a esta parte em que eu fiquei cerca de 20 sem gravar, e agora estou a culminar com a apresentação dum novo CD.
Tem a parte escrita, que está impressa, tem pautas musicais que correspondem a cada um dos versos gravados em Cd´s e em discos Vinil.
Estamos diante de uma obra completa…
Penso que sim. Basta olhar que o livro tem ainda poemas, que embora não estejam editados em disco, tem um conteúdo fraseológico de se aceitar.
Portanto, o conteúdo do livro, pela natureza das músicas, os escritos, os prólogos, os excertos que preenchem cada capítulo, o verso das próprias músicas criam a condição suis generis para dizer que estamos diante de um bom livro com conteúdos políticos e sociológicos capazes de fazer compreender o pensamento, o saber e a estética de Carlos Lamartine.
O mercado cultural, de facto, precisava de uma obra desta dimensão?
Este livro vem praticamente colmatar uma deficiência de conhecimento que ainda é carente no mercado literário.
Como assim?
É um livro cultural, um livro que se apresta ao ensino da música e das artes de uma forma geral, ao nível do ensino e ao nível das escolas.
Eu, particularmente, julgo que o livro devia ser aproveitado para se estudar nas universidades.
Porque pensa assim?
Porque é uma obra completa. Isso seria uma mais-valia para o êxito da abordagem desse livro na sociedade.
Acho que é uma contribuição valiosa.
Os meus fãs que não contavam com esta saída têm mais um motivo para avaliar a capacidade de Carlos Lamartine na sua relação com a cultura nacional.
O processo de distribuição da obra facilitará o acesso para que haja esta abertura ao conhecimento como se referiu antes?
A minha participação é a escrita para o livro, a forma de organização do livro para a impressão.
E os outros processos complementares?
Da edição à distribuição já não compete ao Carlos Lamartine.
É uma acção da Editora, chama-se Mayamba que, por sinal, é minha vizinha na relação que com ela tenho, porque estamos todos aqui próximos da Liga Africana.
Dentro de alguns dias entrarei em contacto com a Editora para ver se é preciso, primeiro, generalizar a venda de livros aqui em Luanda que é o nosso baluarte de acreditação ou se é necessário irmos para outras províncias, em que condições e quais essas províncias em primeiro lugar.
Também vou saber se é necessário abordarmos o livro, porque julgo que é de interesse levá-lo a Portugal e a partir de Portugal alargar o âmbito e a sua venda, e distribuição pela Espanha, França, Brasil, que para mim seria beneficamente agradável.
Sentir-me-ía orgulhoso em saber que o meu livro estivesse nas livrarias de Portugal, do Brasil, dos Estados Unidos, da Espanha, de Marrocos, do México, porque isso daria de facto a uma projecção da imagem do Carlos Lamartine a uma dimensão que ao nível de Angola, tem que ser necessariamente requerida.
Nós temos que ver e saber como valorizar as obras dos angolanos.
O livro merece consideração, está feito, está composto de partes que são interessantes saber.
O que mais podemos ver esmiuçado no livro?
A partir deste livro podemos ver o Percurso da Música Angolana, porque o Carlos Lamartine começou em 1958, 59, se inserindo já nos grupos culturais.
Mas, as referências do livro abordam questões de 1932.
Através deste livro pode-se ter em conta o percurso da música popular angolana, o percurso histórico de Carlos Lamartine até a esta parte e também o percurso de todos aqueles acompanhantes que fizeram do Carlos Lamartine a aposta artística que hoje existe.
Hoje, o Carlos Lamartine é uma pessoa conceituada, uma pessoa reconhecida como um dos pilares da música angolana.
Só por aí, o livro pode demonstrar quem de facto é a pessoa e a personalidade de Carlos Lamartine. Eu acho que é um livro valioso.
Percurso artístico
Josév Carlos Lamartine Salvador dos Santos Costa nasceu em 1943 numa casa de pau-a-pique por debaixo de uma grande árvore, num musseque na cidade de Benguela.
Em 1953, o pai foi transferido para Luanda e levou o Carlos com duas irmãs, num barco denominado “Colonial”, que mais tarde ficou eternizado numa música do conjunto N’gola Ritmos.
Em Luanda, foram viver para o chamado Bairro Indígena, um bairro novo que fora, na altura, destinado para os trabalhadores e funcionários negros de baixo rendimento social e que foram despejados do centro habitacional da capital.
As condições de vida eram modestas, mas vindo da pacata cidade distrital de Benguela, o pequeno Carlos ficou impressionado com a dimensão e grandeza de Luanda.
O bairro era cheio de vida e de pessoas interessantes.
Naquela altura, Lamartine encontrou no Bairro Indígena figuras populares, como o Lopo do Nascimento, Aristedes Van-Dúnem, Professor Mangueira, o Gabriel Leitão, a D. Madalena, entre outras pessoas de influência na sociedade africana daqueles tempos. Figuras que inspiraram moral, ética e profundamente o espírito de defesa do Bairro.
Além deles, Lamartine encontrou também muitos outros jovens de uma criatividade extraordinária e mais tarde, alguns viriam a ser personalidades influentes no país. É o caso de Tizinho Miranda, Círios Cordeiro da Matta, Fernando da Piedade, Tonito Fortunato, entre outros.