Os moradores do distrito urbano do Sambizanga, Luanda, respiram ares de alívio com a redução significativa do índice de criminalidade na circunscrição. A cânfora, nome dado às casas onde um grupo de jovens resolve vários problemas sociais, é apontada como responsável pela nova era. São no total 12 cânforas, controladas por quatro mil patrulheiros da Turma do Apito, distribuídas num distrito que há muito não regista crimes, segundo eles
Anos anteriores a 2020. Sambizanga. Parece um verdadeiro “Bataclan”. Mas, os espetáculos a que se assistem aqui são de jovens e adolescentes armados com objectos contundentes, para se confortarem em rixas contra grupos rivais ou assaltarem os bens de vítimas inocentes. A criminalidade era o cartão postal desta área. Os traços de tristeza estavam nítidos nos rostos de pais que perderam os filhos e de filhos e esposos que ficaram órfãos e viúvos, respectivamente.
A culpa não morre solteira, e era atirada à delinquência desenfreada que controlava o antigo município. Os vendedores, que tinham as bancadas de negócios à frente de suas casas, estavam sempre atentos. Qualquer movimento massivo de jovens é um alerta de que, dentro de minutos, o “Bataclan” vai exibir um triste e sangrento espetáculo. Uma pilhagem está à vista,e os negócios devem ser recolhidos apressadamente. O saldo final destas lutas com causas ingénuas passava por feridos e mortos. Os gladiadores consideram estas batalhas como um desporto e ao número de mortes dão o significado de golos convertidos a favor da quadrilha que matou.
A parte que mais mortes fizer vence a guerra dividida em vários confrontos. Era assim a vida no Sambizanga. Neste distrito, sair pela manhã e regressar a casa à noite, após as actividades do dia, dependia da sorte, e não da segurança garantida pelas autoridades competentes. Os meliantes não dormiam porque precisavam “entrar na via” (roubar).
Sambizanga, em todas as suas fases na divisão político-administrativa de Luanda, como município ou distrito, o problema do crime nunca deixou de estar presente na história da terra em que nasceu o então Presidente José Eduardo dos Santos, e do Nagrelha dos Lambas. Várias políticas para conter o crime fracassaram, segundo os moradores. Os munícipes ficaram cansados com a situação. Alguns abandonaram a zona em busca de sossego. Foi nessas circunstâncias em que os fiéis ao distrito reuniram- se e, a 12 de Março de 2020, fundaram as Brigadas de Vigilância Comunitária, a conhecida Turma do Apito, que conseguiu proclamar paz e segurança, no Sambizanga. Agora, está-se no período pós 2020.
Estruturas funcionais das Cânforas
O coordenador da principal Brigada de Vigilância Comunitária, Eidy da Silva, localizada no sector do Brás, definiu as cânforas como o lugar onde são tratados todos assuntos relacionados com a comunidade, com maior realce para os casos de crime. Nas cânforas, que funcionam como uma esquadra civil, em primeira instância, estão presentes responsáveis para ouvir e atender as queixas dos populares, que ali confiam a solução das suas inquietações. A mesma, depois pode funcionar como tribunal.
Destes, enumeram-se o coordenador da cânfora, também chamada de Posto Comando, os educadores patrióticos, um correspondente pela área jurídica, além dos conselheiros de honra e da figura do Disciplina – o homem que faz cumprir as orientações baixadas superiormente. É a partir dessas estruturas, onde são feitas as distribuições das equipas para a vigilância, durante um determinado período do dia, “de modo a garantir a tranquilidade e o bom sono da comunidade”. O distrito conta com 32 brigadas que apoiam a Polícia no combate ao crime.
Estas formações são constituídas por cerca de quatro mil brigadistas, entre empregados e desempregados, que se doam a favor da comunidade sem quais- quer fins lucrativos. “Anteriormente, estávamos em cinco mil brigadistas, aproximadamente. Hoje estamos em cerca de quatro mil. Naquela altura, o número era maior, porque muitos estavam em casa devido a pandemia. Os brigadistas doam-se. Tiram do pouco tempo e prestam o seu auxílio nas brigadas sem fins lucrativos”, referiu. A Cânfora do Brás é a brigada central. Esta responde por todas outras situadas no sector Mota, onde existem 12 unidades. No sector Madeira existe uma central que responde, também, pela área, assim como na Lixeira e no Santo Rosa.
Formas de actuação para conter o crime
A população investiu os brigadistas de autoridade. Estes, por sua vez, combatem o crime perdendo noites a vigiar cada beco do Sambizanga, sem recurso a armas brancas e de fogo, e sem meios rolantes. Estes jovens dizem combater o crime apenas com bastões utilizados para inibir as acções desses malfeitores. “Fizemos algumas demonstrações de força”, disse. O responsável frisou que esses meios não servem para agredir os meliantes que forem capturados em flagrante delito, mas para os atemorizar.
Eidy avançou que, em caso de resistência, estes são neutralizados com técnicas de artes marciais. “Na sua maioria são neutraliza- dos com técnicas de artes marciais”, explicou. A outra maneira, que tem contribuído para redução significativa da criminalidade, passa pela realização de palestras de sensibilização. Mas, os que insistem nas ilicitudes, quando são flagrados a perpetrar algum crime, dependendo da gravidade do caso, são levados imediatamente à Polícia. “Nos montamos postos, sobre- tudo nas zonas negras, em horários críticos, onde o pessoal fica lá permanente. Trabalhamos 24 horas/dia. Partimos mais pela pedagogia. O nosso foco é conversar e sensibilizar. Também lecionamos, desde a primeira à oitava classe, na Brigada, a custo zero”, informou.
Brigadistas querem vagas nos centros do MAPTSS
Cristino da Silva é da área de Educação Patriótica da Brigada. Disse que, actualmente, a equipa está a trabalhar com o MAPTSS para solicitar desta instituição algumas vagas, a fim de ocupar jovens que foram ganhos do mundo do crime. “Estamos a trabalhar agora com o MAPTSS, para ver se conseguimos algumas vagas para alguns meninos. Isso é um processo. Se os tiramos do cri- me, temos de ter algumas coisas para os ocupar”, considerou.
Vemba António faz parte do conjunto de brigadistas existentes no Sambizanga. O jovem conta que, muitas vezes, têm de abandonar as suas residências para passar as noites nas ruas, a fim de garantir a segurança da colectividade. “É um trabalho que me alegra, porque aqui muitos já morreram por causa do crime. Tenho a triste memória de um sobrinho que foi morto por jovens que estavam em rixas. Isso levou-me a abraçar a causa justa de combate à criminalidade a nível da nossa zona”, contou.
Munícipes exultam
Sofia Paim está com 70 anos e chegou ao Sambizanga em 1990. A anciã conta que o distrito melhorou muito, nos últimos três anos, em termos de criminalidade, por conta do surgimento das Brigadas de Vigilância Comunitária. “Agora estamos muito calmos. Não há mais confusão. A qual- quer hora a pessoa consegue sair. Antes havia muita delinquência, mas, como já temos a Turma do Apito, não temos mais problemas.
Por isso, apoio sempre eles”, contou. Efectivo do corpo de Bombeiros, Élsio António nasceu, cresceu, constituiu família e vive no Sambizanga. O jovem vê a Cânfora como local onde as pessoas batem a porta a fim de receberem auxilio para os seus problemas. “O distrito melhorou em termos de segurança. Hoje, vive- mos e circulamos em paz graças ao trabalho da Turma do Apito; vivemos em segurança como se estivéssemos na Cidade Alta”, disse com alegria. Joaquim Salvador é professor universitário.
O docente e morador do Sambizanga diz que, actualmente, é um dos distritos mais seguros da capital do país, e, por isso, recomenda o local para viver. “Criar os filhos no Sambizanga não é como antigamente. Agora é uma felicidade. Na Turma do Apito temos professores, engenheiros e outros profissionais”, contou. Constância Margarida tem um estabelecimento comercial.
A jovem conta que antes era uma turbulência vender com os adolescentes que estavam sempre envolvidos em rixas. Mas, nos últimos anos, a paz tomou conta da zona. “A Turma do Apito existe sem nenhum apoio. Nós os vizinhos é quem fizemos algumas contribuições para incentiva-los a não desistirem, porque o trabalho que fazem não é fácil. Ontem recuperam a TV plasma de uma vizinha. Eles vão em becos incríveis. É um projecto louvável”, disse.
Mitos sobre as cânforas
Há várias informações sobre o projecto. Há quem diga que as pessoas que são acusadas de algum crime são maltratadas e encarceradas dentro de tanques de água nas cânforas. Além disso, alguns ainda afirmam que estes jovens são um grupo de milícias patrocinado pelo partido MPLA. De outros, ouve-se ainda que a Turma do Apito faz cobranças coercivas de valores monetários aos moradores em troca da segurança que oferecem, e, por outro lado, que os seus membros são desempregados e aguardam promessa de enquadramento nas fileiras da Polícia Nacional.
No entanto, Eidy da Silva nega to- das as acusações e esclarece que, primeiro, ninguém é maltratado na cânfora, independentemente do que tenha feito, por serem a favor da integridade física das pessoas e do bem vida. Explicou que as pessoas com provas palpáveis de cometimento de algum ilícito, dependendo da gravidade, são apenas submetidas à realização de serviços comunitários, como limpeza de um espaço público e depois aconselhado pelos educadores patrióticos, ou entregues à Polícia Nacional.
“Tudo isso é mito. Ninguém fica preso na cânfora. Nós não temos condições para prender ninguém. Não temos celas. Só temos aqui estas mesas e cadeiras. Não há, também, cobranças coercivas. Nós existimos graças à comunidade que abraçou e apoia, voluntaria- mente, o projecto. Nós não obriga- mos”, sublinhou. Recordou que projecto surge da comunidade, que decidiu ajudar a Polícia no combate ao crime, e que, mais tarde, com a necessidade de estrutura-lo, apareceu o ex-administrador do Sambizanga, Tomás Bica, que deu cara e peito à iniciativa.
“Tomás Bica foi o homem que deu o peito à bala pelo projecto”, contou. Hoje, contrariamente ao princípio das brigadas, o projecto era mal compreendido, observa-se uma boa relação com efectivos da Polícia, do Serviço de Investigação Criminal (SIC), e da Direcção de Investigação de Ilícitos Penais (DIIP). “Já há um casamento razoável”., realçou. No final, o coordenador dessa Cânfora admitiu que ainda existem alguns roubos, mas, explicou, são casos muito particulares. “São casos isolados. Hoje, o Sambizanga tem paz e segurança. A criminalidade baixou 95 por cento”, rematou.
“À luz da lei não há nada contra a existência da Brigada de Vigilância Comunitária”
De acordo com o jurista André Mingas, não existem leis que contrariem a existência da Brigadas de Vigilância Comunitária no ordenamento jurídico do país. O profissional explicou ainda que, na lei das associações, são proibi- das apenas aquelas que promovem a violência e a violação de direitos humanos, propósitos que não fazem parte da Turma do Apito. “À luz da lei não há nada que seja contra a existência da Brigada de Vigilância Comunitária.
A lei não proíbe a criação de associação de natureza comunitária e que per- siga fins colectivos, como a paz social”, explicou, citando o artigo 47 da Constituição e a Lei 14/91 de 11 de Maio. André Mingas entende que esta Brigada foi criada no âmbito do programa de combate à criminalidade, e, por isso, visa garantir a segurança, da mesma forma que existem outras voltadas para o combate à fome e endemias, por exemplo. “Tem algum embasamento jurídico ou legal, desde que esta instituição não venha a concorrer com as instituições legal- mente estabelecidas. Neste caso, a Polícia Nacional é o órgão com- petente para fazer o uso da força. Não pode esta brigada fazer o uso da força, detenções e apreensões”, explicou.