As redes sociais têm sido, nos últimos tempos, o principal palco para exibições de actos de desacatos contra uma das forças de ordem e segurança do Estado, particularmente a Polícia Nacional. Cidadãos comuns, na maior parte das vezes, sem qualquer tipo de esclarecimento sobre o que representa o Polícia, são os protagonistas destas acções, incorrendo em crime
São cada vez mais comuns, por via das redes sociais, actos em que a sociedade to- ma conhecimento de vários casos de afronta de cidadãos aos operativos da Polícia Nacional em ser- viço, chegando, algumas vezes, a vias de facto, ou seja, resultando em agressão brutal a desfavor desta força republicana que trabalha para a protecção dos seus concidadãos.
O que não sabem é que este tipo de atitude, segundo o jurista Waldemar José, o cidadão incorre em ilegalidade, sendo que os polícias têm sido vítimas de ofensas à integridade física e algumas inclusive graves, por aquilo que se tem dado a ver através nas plataformas digitais.
O polícia em serviço está imbuído do “espírito” do Estado, representando-o, como tal, avisa Waldemar José, ainda que haja alguma ilegalidade ou irregularidade por parte deste contra o cidadão, este tem mecanismos próprios para fazer chegar a sua queixa e não partir para a violência.
“O cidadão tem sempre onde interpor recurso. Desde a Inspecção da Polícia, a Procuradoria, tanto a militar como a civil, os tribunais, tem os recursos hierárquicos. Daí que há vários mecanismos que podem ser impugnados pelo cidadão, ao invés de partir para a violência o que não pode ocorrer”, destacou o nosso interlocutor.
Desse modo, embora o cidadão não tenha obrigação de dominar as ferramentas do Direito, quando há desacato à autoridade, reforça o jurista, o prevaricador incorre no crime de desobediência, de resistência à autoridade, ofensa à integridade física e até à ofensa moral (injúria, difamação). Neste sentido, é necessário que haja de ambas as partes alguma ponderação para saber lidar com esse tipo de comportamentos, sendo certo que, uma acção gera uma reacção, e se o comportamento for menos adequado por parte da autoridade, é natural que a população possa reagir de forma inesperada.
“Independentemente, de nada justificam as condutas adoptadas pelos cidadãos. Nós reclamamos de algum excesso, mas noutras geografias, uma acção desta natureza acaba em morte. Há países que é inadmissível tal desacato para com a autoridade. Nós vamos tendo um ou outro incidente, mas ainda estamos longe de alcançar algumas estatísticas daquilo que ocorre até em países de primeiro mundo, co- mo nos Estados Unidos da América, o país da democracia”, avisa. No caso mais recente em que o polícia aparece a retirar a mota e por sua vez, os cidadãos o surpreendem, a sua reacção no final do acto foi de bastante ponderação, uma vez que conseguiu resgatar a sua arma, e se ele já em posse da arma fizesse disparos podia ter sido fatal.
Ponderação
Relativamente à ponderação que deve haver, segundo Waldemar José, não pode ser exigida apenas à autoridade, mas é uma responsabilidade de todas as forças vivas da sociedade, sendo a educação a principal base, que deve começar na família, nas escolas, uma vez que é imperioso que a população esteja educada.
Excessos vs educação Admitindo que possa haver de par- te da Polícia algum excesso na abordagem ao cidadão, por um lado, por outro não havendo população que esteja suficientemente educada para lidar com esse tipo de comportamentos, logicamente, para Walde- mar José, por mais que haja investimentos na Polícia, o cidadão vai sempre adoptar algumas medidas que prejudiquem a sã convivência em sociedade. “Algumas situações que acompanhamos é por falta de educação, tanto do cidadão, como também devemos reconhecer, de alguma instrução por parte da Polícia.
Nem todos os polícias estão preparados e vocacionados para lidar com esse tipo de incidente”, reconheceu. O oficial comissário da Polícia Nacional referiu que esta falta de preparação, não deriva da má vontade do órgão policial, mas é um processo que advém de outros condicionalismos fruto da história recente do país, mas garante que tudo está a ser feito para a sua efectiva reestruturação.
“É fundamental que o Polícia passe por um Instituto Superior, para uma melhor preparação e qualificação, podendo dominar melhor os normativos, os direitos fundamentais, quais devem ser os seus limites, como empregar a força, todas essas matérias são ministradas no Instituto Superior como também no Ensino de Base policial que está a ser reestruturado”, informou.
O comissário esclareceu, de igual modo, que a solução não passa apenas em retirar do círculo policial os menos preparados e substituí-los por novos, pois isso poderá causar outro problema social, o desemprego e com as consequências que ele pode acarretar, sobretudo, a pessoas que já tiveram contacto e saibam manusear armas.
Fragilidade da autoridade Por sua vez, o sociólogo Nkanga Gomes, considera este caso como sendo um fenómeno que demonstra fragilidade das autoridades, por parte da própria Polícia, que no caso em concreto é a visada nesse assunto decorrente de vários factores. Explica que quando há fragilidade da autoridade o cidadão perde o medo, pois o sentimento de impunidade é elevado e essa situação agrava-se na senda da nova política do Executivo, liderada pelo Presidente da República, João Lourenço, que traz o aspecto da democratização das instituições.
“A democracia é muito importante, mas a própria democratização não pode retirar a autoridade da Polícia. E o nosso cidadão não está preparado para viver no princípio do respeito entre a Polícia e os seus limites. O cidadão, dada a impunidade, afronta a Polícia, porque o Executivo instituiu um equilíbrio às autoridades fruto da excessiva força do passado”, apontou. O académico acrescentou, que esse posicionamento foi esquecido que pudesse ter um efeito perverso, pois para si, o cidadão angolano é indisciplinado e maior parte das vezes funciona no princípio da força e da autoridade, por isso o respeito mútuo não está ainda vinca- do na sua mentalidade, sendo que só avança com repreensão.
Por isso, refere, a Polícia ao invés de reforçar o mecanismo da autoridade prendendo o cidadão, levando-o aos órgãos competentes de justiça, está a conduzir essa situação numa perspectiva de que o cidadão também pode reagir, por- que a Polícia teve excesso, não de- via assim proceder, porque fragiliza a autoridade. “Com essa fragilidade da autoridade vai se chegar a um nível, em que o próprio Polícia vai começar a abdicar-se das suas funções, a medida em que estamos numa posição em que o cidadão não respeita.
Quando o cidadão sofre alguma represália, vai à Polícia, mas é a própria Polícia que o cidadão agride. É esse o efeito perverso do sentimento”, disse. Nkanga Gomes disse ainda que, desse modo o cidadão ao ir queixar-se à Polícia, esta fará “ouvido de mercador”, fingindo registar o caso, mas ao fim e ao cabo não dará continuidade ao eventual processo aberto, morrendo à partida na Esquadra em que foi feita a queixa.
Reversão da situação Para Nkanga Gomes, a reversão do quadro de modo a desinibir essas situações que com alguma frequência se vão registando, sobre- tudo na capital do país, Luanda, é de opinião que deva haver de parte do Estado, por via do Presidente da República e do ministro da tutela, mudança na vertente do discurso. Ou seja, deve-se passar uma mensagem à sociedade de que deve-se respeitar a Polícia, as autoridades, pois quem desobedecer sentirá a mão pesada da justiça.
“Quando a orientação vem de cima, o sentimento de medo do cidadão reforça. A Polícia vai ganhar credibilidade como agente regula- dor da ordem pública”, defendeu o sociólogo. Questionado sobre a abordagem e o posicionamento do ministro do Interior, Eugénio Laborinho, aquando do Estado Emergência em consequência da pandemia da Covid-19, avisando na época que quem descumprisse o Decreto Presidencial, “a Polícia não havia de distribuir rebuçados e chocolates”, que veio a merecer fortes contestações e achincalhamento da sociedade.
Uso da força
Em relação a essa questão, Nkanga Gomes considerou que o posicionamento do ministro do Interior estava descontextualizado, porquanto estava-se a viver uma época sensível de uma patologia que afectou o mundo inteiro, a Covid-19, por isso não se adaptava. “Nós tínhamos fome, doenças e havia limitações das liberdades, então, aquele discurso naquela altura não era propício. E a Polícia matou muita gente incluindo um médico, mas nessa altura deve-se reforçar o discurso do uso da força. E levar quem assim prevaricar a julgamento sumário, passando nos meios de comunicação. Isso vai desencorajar a prática de afrontar as autoridades”, defendeu. Caso isso não venha acontecer, avisa, teremos uma Polícia que pode vir a não cumprir com as suas acções.
Responsabilização aos prevaricadores
A especialista em Direitos Humanos, Florita Telo, considera que essa situação decorre primeiro da cultura nacional de naturalização da violência a que se somam outros factores, económicos, de pobreza, de desemprego, daí que devia haver responsabilização, que começa com os responsáveis estatais que praticam ilegalidades contra os cidadãos, e estende-se ao resto da população, pois quando ocorre violência, põe-se em causa o Estado de Direito e Democrático. “Este Estado de Direito é baseado na lei. A nossa constituição estabelece limites ao uso da força por parte das autoridades e particulares.
Existem regras, somente determinadas instituições podem fazê-lo e dentro de determinados padrões que a própria lei estabelece. E isso nunca foi cumprido em Angola. É um estado de desorganização generalizado”, criticou. Para a autora do livro “Angola: A trajectória das lutas pela cidadania e a educação em direitos”, o Estado não tem de impor a autoridade como primeiro e único recurso, pois até agora se tem apresentado como autoritário, recorrendo à força fora dos limites constitucionais. O que deve fazer é cumprir e fazer cumprir com o estabelecido na Constituição da República.
“Deve cumprir no que refere ao uso da força e no que diz respeito aos direitos humanos. Devido ao uso excessivo da força, a sociedade tende a reproduzir esta postura, considerando também que ainda há pouca responsabilização quer seja para as instituições do Estado assim como os cidadãos”, apontou. Florita Telo referiu que a responsabilização de agentes da autoridade deve ser civil e criminal, para que as pessoas possam confiar no sistema policial, de tal modo que possam denunciar e apresentar queixa.
É também de opinião que há necessidade de reforço da instrução das pessoas, via educação em direitos humanos para acabar com a cultura de banalização e violência que não resolve nada. A nossa interlocutora disse, por outro lado, que o que está em causa não é apenas olhar para a atitude do cidadão que desafia a autoridade, pois não exerce a força conforme emanam as regras num Estado de Direito, mas é o facto de esta violência ser a manifestação de uma situação generalizada criada e alimentada pelas instituições do nosso Estado ao longo dos anos.
Cidadãos condenados
De realçar que os dois cidadãos envolvidos no último vídeo que viralizou nas redes sociais, foram condenados na última Quarta- feira, 12, no Tribunal municipal de Belas, pelos crimes de resistência à autoridade e ofensas à integridade física, conforme fez saber ao jornal OPAÍS, o porta-voz do Comando Provincial da Polícia de Luanda, superintendente Nestor Goubel. O autor moral do crime Mutemo Tchitumbo foi condenado a um ano de prisão efectiva e a pagar 50 mil Kwanzas ao efectivo da Polícia, ao passo que o outro, saiu em liberdade após pagamento de 75 UCF e despesas oriundas da vandalização.
O oficial reforçou que a Polícia continuará a fazer o seu trabalho e desaconselha os cidadãos a incorrem em actos desacatos, por constituir crime previsto nas leis vigentes no país, sendo que o órgão afecto ao Ministério do Interior será implacável contra os prevaricadores. Luanda é, até ao presente momento, embora não nos tenha sido possível obter este dado de forma oficial, mas é a província dentro das estatísticas que mais casos regista de desacatos, a maior par- te dos casos envolvendo cidadãos moto-taxistas e taxistas.