Quando o bolso já não consegue suportar o vício, consumidores deixam aí pertences de valores em troca de pequenas quantidades de drogas. Relógios, fios, calçados, roupas e outros objectos são deixados em mãos de passadores por consumidores em troca de pequenas porções de estupefacientes para saciar o vício que tem contornos elevados
No primeiro contacto com o Largo, no bairro Cruzeiro, no Miramar, em Luanda, parece ser uma área normal, longe de quaisquer perigos. Mas, num olhar mais detalhado, nota-se o esquema envolvendo o tráfico e o consumo de drogas naquele local.
O pequeno parque, ladeado de casas construídas no tempo colonial, esconde um comércio ilegal que arrasta homens e mulheres que sobrevivem do arrojado esquema Motoqueiros, mecânicos, lavadores de carros e pequenos prestadores de serviços, que chegam à madrugam ao largo, são apontados como os principais passadores da droga que vai parar aos consumidores, a maioria dos quais jovens.
Ao longo do dia o cenário não é tão agitado assim. Mas, a noite, a calminha dá lugar a um movimento estranho e de correrias. Carros de vários portes e com vidros fumados, motorizadas e até pessoas “apeadadas” chegam ao largo de forma camuflada. Do porta-bagagem e mochilas saem objectos e encomendas que a nossa equipa não conseguiu flagrar se realmente são drogas. Mas, em conversa disfarçada com utentes do largo e consumidores do produto, dizem que sim.
Trata-se, segundo eles, de drogas que alimentam de forma ilícita um mercado que não tem respaldo legal. Contas feitas, o esquema no largo não é um assunto novo. Vem de longe. Mas a carga policial fez diminuir o movimento que cercava a zona. Para lá, o estupefaciente já arrastou gente de vários estratos sociais, entre anónimos e até famosos. Apesar do tempo, a força da droga resiste naquele largo que, num dos seus pontos, tem um colégio do ensino primário. A polícia, por sua vez, também não pára de fazer o seu trabalho de supervisão. Como constatamos, a cada minuto o parque é policiado por patrulhas de um lado para o outro. Mas o disfarce dos operadores da droga consegue driblar a acção dos homens da farda.
O comando
Na curta conversa com os utentes do parque, todos negam o contacto com as drogas. Ninguém fala sobre o assunto. Mas a abrangência e os estragos todos conhecem. Naquele largo, o tráfico de estupefacientes já destruiu e segue na destruição de famílias, grande parte delas de classe media-alta. Por lá já ficaram muitos salários, apostas e dívidas que terminaram em mortes ou no sumiço de gente que até hoje o tempo não revela o paradeiro.
Quando o bolso já não consegue suportar o vício, filhos de gente com posse e outros de famílias de baixa renda deixam aí pertences de valores em troca de pequenas quantidades de drogas. Relógios, fios, calçados, roupas e outros objectos são deixados em mãos de passadores por consumidores em troca de pequenas porções de estupefacientes para saciar o vício. Entretanto, depois de passarem do plafond daquilo que deixam em troca da libanga, cocaína crack e outras substâncias toxicas-dependentes, alguns podem até pagar com as suas próprias vidas quando já não têm dinheiro para saldar as dívidas.
Movimentos
Embora o largo seja um espaço público, mas o esquema da droga fez imperar, naquele local, o sentimento de insegurança, medo e desconfiança, o que afasta cidadãos comuns de escalarem o espaço construído para o descanso e lazer dos moradores daquele perímetro.
Homens, supostamente líderes ou mandatados pelos responsáveis do negócio da droga, circulam de um lado para o outro controlando quaisquer movimentos que ponha em risco o comércio. O andar discreto, olhar atento e a movimentação permanente não escondem a ligação destes homens com o submundo que rende, de forma ilícita, milhões, com todos os prejuízos inerentes às famílias de quem consome.
Todo o cuidado é pouco
PS é lavador de carros e consumidor de drogas há anos. “Boca” é a designação que o jovem, de 28 anos de idade, se refere ao largo. Aliás, é este o código que os envolvidos no comércio de substâncias ilícitas usam para se referir ao local. No primeiro contacto com o OPAIS, o jovem demonstra receio para falar sobre o assunto. Depois de alguma insistência, abre-se com a imposição de falar sobre o anonimato. Não ser identifica- do é a condição imposta por medo de sofrer represálias da parte de quem comanda o negócio. Sem revelar o tipo de drogas que consome, PS conta que, muitas vezes, quando não teve dinheiro para pagar o produto, hipotecou bens materiais, inclusive o próprio telefone para saciar o vício. “Aqui não se brinca. Todo cuidado é pouco. Muitos de nós entre- gamos coisas de grande valor para matar a sede da droga. Mas é a vida que escolhemos”, lamentou.
Tudo pelas drogas
LS é das muitas que têm a vida destruída por frequentar o parque e se envolver com drogas. Naquele local, ela passa a maior parte dos dias, sobretudo às noites. Mãe de seis filhos, dois deles a viverem com ela na rua, a jovem, de 39 anos de idade, disse ter perdido tudo por causa das drogas. “Parte dos pais dos meus filhos não conheço. São pessoas que só tivemos juntos uma vez e dali nunca mais nos cruzamos. Nos envolvemos porque necessitava usar cocaína e hoje tenho a vida destruída”, afirmou.
Testemunhas das vidas tombadas
DG é outras das testemunhas que disse ver, há anos, vidas a acabarem naquele recinto. O segurança de uma das unidades hoteleiras que fica nas redondezas do parque, valoriza o facto de o movimento ter diminuído substancialmente, mas lamenta os sonhos e as vidas que ali já tombaram por conta das drogas. “Nós, que trabalhamos aqui há muito tempo, vimos muitos jovens a se perderem. Quando já não conseguem sustentar o vício, acabam por trocar coisas de grande valor por uma cocaínazinha. É triste”, lamentou.
Já foi pior, mas os estragos continuam
TMS é residente numa das casas à volta do Largo. Conta que é dos mais antigos moradores, tendo herdada a casa do falecido pai. Ao falar do largo, o mais velho, de aproximadamente 60 anos, refere que a zona já foi pior no que a venda de drogas diz respeito. Actualmente, frisou, apesar de ainda existirem números de consumidores, mas conta que já se pode dormir um sono tranquilo porque a actuação da polícia fez cair o volume de usuários. “Isso aqui, nos tempos anteriores, nem poderias encontrar espaço. Era consumo por todo la- do. E muitas famílias destruídas. E hoje continua, sobretudo aos finais de semana”, contou o ancião.
Policia no empurra-empurra
Sobre o assunto, o OPAIS contactou o porta-voz da Policia em Luanda, Nestor Goubel, que recusou falar, alegando que a abordagem em causa é da esfera de actuação do Serviço de Investigação Criminal (SIC) por ser, esta instituição, que lida com questões que tem a ver com o crime organizado. Já o porta-voz deste órgão, Manuel Halaiwa, prometeu prestar algum esclarecimento, em coordenação com SIC-Luanda, mas até ao fecho desta matéria não avançou com nenhuma informação a respeito.